Capítulo 4

2955 Palavras
- Revelarei a verdade ao conde.- Disse Beatriz para Miguel, enquanto desenhava no papel já rabiscado, um de seus novos e belos modelos de vestido.- É a única forma de que me devolva o sapato da duquesa.-  Ela estava atrás do balcão do ateliê de sua tia, pronta para mais um dia de trabalho, e acordou mais cedo do que todos em sua casa, no intuito de evitar se deparar com Doroteia. Ainda não estava pronta para lidar com as provocações da mulher sem sucumbir à vontade de voar no seu pescoço e chutar o seu traseiro.  - E acha que vai conseguir olhar para Durkham depois de… Bem, depois de descobrir que ele está noivo.- Falou Miguel, de frente para o balcão.- Eu posso cuidar disso para você, inclusive posso ir agora mesmo recuperar o sapato.-  Beatriz sentiu a bile na garganta. Precisou parar de desenhar para retomar o fôlego e tentar espantar a sensação r.u.i.m ao relembrar o fato de que todo o momento í.n.t.i.m.o entre ela e Alex não passou de uma despedida de solteiro para um homem que estava prestes a se casar.  - Eu tenho que conseguir, Miguel, e isso é algo que devo enfrentar.- A moça respirou fundo e empertigou a coluna, olhando seu amigo nos olhos.- Poderia dizer que a noite passada foi um erro, mas foi a primeira e última chance de ir para um baile e ter a minha noite de princesa. Dei o meu primeiro beijo e pela primeira vez senti o afrodisíaco de ser tocada por um homem. Se não fosse pelo relógio, talvez eu tivesse ultrapassado todos os limites. Mas não vou me arrepender. Em breve Alexsander Windsor estará casado com Lady Luciana e eu passarei a ser mais uma da coleção de suas conquistas.- - Pare de se desmerecer, Bea. Lady Luciana não é mais do que você por ser a filha de um conde. Acho que existe muito por detrás dessa história do noivado, e antes de dar o seu julgamento final deveria procurar saber.-  - Do que adianta procurar saber? O conde jamais se casaria com uma vendedora de sapatos que precisou roubar os sapatos de uma duquesa para ficar apresentável em um baile.-  Talvez como uma peça pregada pelo destino, a maçaneta da porta que dava acesso á rua girou, e Beatriz sentiu o ar lhe escapar dos pulmões quando se deparou com o conde de Durkham atravessando a porta até o balcão. - Bom dia.- Disse o aristocrata, parando de frente para Beatriz.  A garota primeiramente foi acometida por um excesso de tosses, engasgando com a própria saliva, e depois, quase tropeçou no banco que estava logo atrás, caindo sentada nele. - A senhorita está bem?- Perguntou o conde, olhando-a com preocupação.  Beatriz estava cabisbaixa, tentando esconder o próprio rosto.  - Ela estava comendo um biscoito e acabou se engasgando, mas parece que já está bem.- Explicou Miguel. - Bom, eu apenas vim perguntar se conhece isso aqui.- Durkham puxou o sapato de cristal do bolso da roupa, pousando-o sobre o balcão.  Beatriz não evitou respirar de alívio ao ver que não precisou ir até o sapato. A peça foi magicamente até ela, e precisava resolver aquela situação de uma vez por todas. - É um dos sapatos de cristal que foram comprados pela duquesa de Birmingham.- Respondeu a mulher, sem sequer olhar na direção do homem.- Foram roubados ontem a noite, fico feliz que o senhor o tenha recuperado.-  Miguel fitou sua amiga com os olhos arregalados, sem de fato acreditar que ela estava se definindo como uma ladra para o homem por quem estava encantada.-  - Roubados?- O homem parecia decepcionado, e aquilo de certa forma frustrou muito Beatriz.- Deve haver algum engano.- - Não há nenhum engano, milorde. A duquesa os comprou e os deixou guardados aqui por enquanto. Alguém invadiu o ateliê ontem a noite e os roubou.-  - Sua voz me parece familiar.- Durkham entortou a cabeça para o lado, tentando ver os traços do rosto da mulher que o dirigia a palavra. - Minha voz é um tanto comum, milorde.- Beatriz esticou a mão para segurar o sapato, o que a fez destampar o seu desenho que ainda estava a sua frente. - Foi a senhorita que desenhou?- O homem que estava próximo demais do balcão perguntou com um certo interesse ao olhar a folha de papel. - Estou desenhando. Ainda está inacabado.- Ela segurou o sapato, colocando-o atrás do balcão. - É Beatriz quem desenha e costura todos os modelos do ateliê, milorde. Inclusive, ela tem todos eles guardados em sua oficina, que é ali atrás, no depósito.- Disse Miguel.  A garota enrubesceu, e ergueu a cabeça para repreender o amigo com os olhos, e foi aí que pecou, deixando Alexsander ver seu rosto. O que mais chamou atenção para Alex foram os olhos verdes e familiares da garota. Seu coração palpitou, exatamente como na noite anterior, e por um breve momento passou na cabeça de Alex que poderia ser aquela simples moça a dama mascarada que fugiu dele na metade da festa e perdeu um sapatinho aparentemente roubado. - Quem é a senhorita?- Ele perguntou maravilhado. - Sou apenas a vendedora de sapatos, milorde. Como disse meu amigo, sou eu quem também desenho e costuro a maioria dos modelos, já que minha tia, a dona do ateliê, é uma mulher muito ocupada.-  Havia algo de intrigante naquela mulher, e o conde decidiu que não sairia dali sem saber mais sobre ela. - Esteve no baile ontem a noite?- Perguntou o homem. - Não, senhor, eu não estive. Não tive tempo, já que quando acabo de trabalhar estou exausta demais para fazer algo além de dormir.- Alex ponderou a respeito das palavras da garota, e por mais que parecesse suspeito o sapato de cristal levá-lo justamente até ali, não haveria chances da elegante dama mascarada ser uma simples vendedora de sapatos. As roupas daquela mulher eram gastas e havia uma dureza e tristeza em seu semblante que não condiziam com a senhorita que ele conheceu na noite anterior. De certa forma, Alex ainda estava intrigado com a moça que parecia sofrer abusos da própria família, e teve a certeza de que os talentos dela lhe seriam úteis. Queria ajudá-la, e sentiu que essa era a forma de fazer justiça.  - Tenho um pedido a lhe fazer, senhorita, um convite para ser mais exato.- Disse o conde.  A garota inclinou a cabeça para o lado, olhando-o com seus marcantes e adoráveis olhos verdes.  - Aceita passar uma pequena temporada em minha casa, criando e costurando os figurinos de final de ano para a minha família? Pagaremos muito bem pelos seus serviços.-  A primeira reação de Beatriz foi ficar sem reação. Ficou muda, perplexa, e olhava para o conde com incredulidade. Depois, a raiva começou a crescer dentro de si. Se continuasse naquele caminho, provavelmente, Alex a pediria que desenhasse e costurasse os figurinos para o seu casamento. E logo em seguida, mudando o seu humor da água para o vinho, Beatriz percebeu que era a primeira vez que seria reconhecida pelos seus talentos e não poderia deixar aquela oportunidade passar. Quando finalmente tivesse vinte e um anos estaria falida pelas extravagâncias de sua tia, e um dinheiro extra como aquele seria mais do que bem-vindo para que pudesse montar seu próprio ateliê.  - E-u realmente fico muito inclinada a aceitar, mas…-  - Por que existe um “ mas”?- Perguntou Alex. - A minha tia. Ela precisa de mim no ateliê e duvido que me libere.-  - Basta o conde falar com ela, que madame Doroteia não terá escolha. Duvido que recuse o pedido de um aristocrata.- Disse Miguel. - É uma excelente ideia, rapaz. Se a senhorita permitir, eu mesmo falarei com sua tia.-  Beatriz abriu a boca para falar algo, mas se deteve. A garota assentiu, concordando com a ideia.  - Será que posso saber o seu nome?- Perguntou o conde. - Beatriz.- Respondeu a moça.  - Te vejo mais tarde? Quando vier buscá-la para levá-la a mansão?-  - E o que faz o senhor pensar que minha tia concordará?- Perguntou Beatriz. - Eu sei que ela concordará. Preocupe-se apenas em ajeitar suas malas, senhorita. Pelo final da tarde minha carruagem virá buscá-la.-  … Doroteia acordou especialmente aborrecida naquela manhã. Após ter sido enfrentada pela sobrinha e expulsa de um quarto em sua própria casa pelo entregador da venda, sentia como se tivesse perdido o controle de sua vida. Beatriz estava começando a se rebelar, e se continuasse assim, Doroteia acabaria perdendo a fortuna da sobrinha antes do esperado. Acabou espetando o dedo duas vezes ao tentar terminar um bordado e desistiu, jogando a agulha e o novelo de linha para longe.  - Matilde!- Gritou Doroteia a plenos pulmões, chamando pela empregada, que aproximou-se às pressas. - Sim, madame.- Disse a mulher, parecendo nervosa com o humor da patroa.  - Traga a bandeja de chá e sirva o meu com leite e sem açúcar. Não demore, hoje não estou com paciência.- Exigiu Doroteia.  A funcionária assentiu, e praticamente correu até a cozinha para atender às ordens da patroa. Filipa e Katherine estavam espalhadas pelas poltronas, cada uma com sua própria atividade. A primeira lia um folhetim de fofoca, a segunda parecia entretida com um livro, porém as duas tiveram a concentração interrompida pelo humor ácido da mãe.  - O que aconteceu, mamãe? Parece nervosa desde ontem.- Observou Filipa. - O que aconteceu… Sua prima aconteceu. Aquela c.a.d.e.l.a tirou o dia para me irritar.- Ela respirou fundo, tentando canalizar um pouco de calma antes de se virar para as filhas.- Escutem bem, não quero mais que aquele entregador de leite coloque os pés na minha casa. Fui clara?- Perguntou Doroteia.  - Por mim ele nunca entraria.- Filipa tornou a prestar atenção ao folhetim, que parecia mais interessante do que a crise de raiva da sua mãe.- Aquele vira-lata só serve para empestear o ar de pobreza.-  - Ele sempre foi um bom amigo. Gosto do Miguel.- Disse Katherine. - Katherine, querida, você é mais útil com a boca cheia de comida, porque assim permanece quieta.- Disse Doroteia, olhando duramente para a filha mais nova.  - Olhem só, aqui no folhetim está falando sobre a solteirice do conde manco. O pobre homem ficou sentado à noite inteira e não se aproximou de nenhuma senhorita. Ao menos tem consciência de que ninguém se casaria com um homem inválido.- Disse Filipa cruelmente. - O conde de Toulose é um homem muito bonito e se as pessoas não fossem tão preconceituosas ele seria um dos solteiros mais cobiçados da temporada. E se quer saber, acho uma grosseria que se refiram a ele como o “ conde manco”.  - É o que ele é, querida. Mas acho que deveria aproveitar para investir nele, é o máximo que alguém como você conseguiria para se casar, um homem defeituoso.- Provocou Filipa.- Vejamos bem como ficaria o casal… O conde manco e a condessa gorda.-  Katherine não era gorda de verdade, ou ao menos quando não se levava em conta o padrão de magreza londrina. Sua silhueta era fina e o seu quadril largo, o que era pouco convencional. Também não tinha muitas restrições na hora de comer e por ter sido uma criança gorda, sua mãe e sua irmã gostavam de implicar com ela quanto a essa questão.  - Eu duvido muito que alguém queira se casar com você, Filipa.- Retrucou Katherine.- Só se esse alguém for tão inteligente quanto uma ervilha, assim como você.-  - Ao menos sou bonita e se não fosse por Lady Luciana, eu tenho certeza que Durkham teria caído aos meus pés.- Filipa deu de ombros de forma arrogante. - Esqueceu da dama misteriosa? Porque, querida, nem Lady Luciana e menos ainda você são páreos para ela.-  - Tenho outras opções. Quanto a você, deverá escolher entre os biscoitos amanteigados de Matilde e o conde manco. Quem sabe o o mau humor dele não te faça ter tanta raiva que funcione melhor do que um regime para te fazer perder a fome e emagrecer.-  - Quem desdenha quer comprar. Está furiosa porque Marlon Breton não deu a mínima para você, assim como os outros nobres.- Provocou Katherine. - Veja, mamãe, sua filha assanhada está chamando o conde manco intimamente pelo nome.-  Doroteia, que estava absorta da discussão de suas filhas como de costume, e apenas ergueu a cabeça do bordado que ela voltou a tentar fazer para segurar a xícara de chá servida por sua criada.  - E você está com ciúmes. Marlon Breton parece ser o tipo de homem que foge de mulheres insípidas como você.- Katherine tornou a olhar para o seu livro.  - Eu não sei o que significa, mas vindo de você não pode ser boa coisa, sua ratazana obesa de saias.-  - Insípida é alguém sem personalidade.- Explicou Doroteia, vendo que sua filha caçula já tinha desistido daquela discussão.- Agora será que pode ficar em silêncio enquanto termino meu chá?- m*l a mulher mais velha pousou a xícara na boca, e alguém bateu com a aldrava de sua porta por duas vezes. Doroteia chegou a fazer menção de gritar, mas Matilde, que com os anos tinha adquirido reflexos rápidos, abriu a porta antes mesmo que o som saísse da garganta de sua patroa.  - Quem está aí? Se for aquele entregador diga que está proibido de colocar as patas sujas na minha casa.- Exclamou Doroteia. - Sou eu, madame.- Alex cruzou a sala de estar sem nem mesmo ser convidado, imaginando que a dona da casa não se oporia a isso.- Alexsander Windsor, o conde de Durkham.- - Milorde.- Doroteia ficou de pé imediatamente, fazendo uma reverência desajeitada.- Perdoe-me pela falta de jeito. Sente-se, por favor, estava justamente tomando um pouco de chá.-  - Não se incomode, madame, eu serei breve.- Alex pigarreou, olhando de soslaio para a filha loira e oferecida da anfitriã que estava praticamente quase se jogando - literalmente- sobre ele.- Estive em seu ateliê mais cedo e conheci Beatriz, sua sobrinha…-  Mal o homem terminou de falar e Doroteia já estava mais pálida do que cera de vela. Titubeou para trás, caindo deselegantemente no sofá em que estava sentada antes do lorde passar pela porta. - Mamãe, está tudo bem? A senhora ficou pálida.- Disse Katherine, se obrigando a soltar o livro para acudir a mãe.  O conde franziu o cenho ao observar a atitude desproporcional da modista, e isso enfatizou mais ainda as suas suspeitas. Doroteia tratava a própria sobrinha como uma escrava, e, mesmo não entendendo o porquê, era claro que não queria que ninguém se aproximasse da moça, e media esforços para torná-la pouco atraente. Aquelas três mulheres usavam vestidos caros e bem ornamentados, diferentemente de Beatriz, que trajava de roupas surradas e sapatos gastro. Os cabelos de Doroteia e suas filhas estavam presos em coques perfeitamente alinhados, ao contrário dos de Beatriz, que ficavam praticamente soltos.  - A questão é que Beatriz é muito talentosa nos desenhos, a surpreendi fazendo um, e pelo que me disse o amigo dela, também é Beatriz que costura os vestidos de sua loja…-  - Ela me ajuda, milorde. Sou uma mulher muito ocupada e…- Doroteia se apressou ao tentar reverter aquilo, mas Alex a interrompeu.  - Sim, a moça já me explicou. Vim até aqui pedi a sua permissão para que sua sobrinha passe uma temporada na minha casa e se dedique exclusivamente a fazer os trajes de final de ano da minha família. Faremos uma grande recepção para amigos e familiares e Beatriz está à altura da nossa festa.- Doroteia abriu e fechou a boca como se fosse um peixe se afogando com o ar puro. Se Beatriz virasse exclusividade dos Durkham ela estava perdida. Todas as suas clientes da alta sociedade escolhiam apenas os vestidos feitos por Beatriz, o que era uma tragédia, já que estava prestes a perder muito dinheiro com a proposta do conde. Além de que, corria o risco do homem descobrir que a sua sobrinha era a dama mascarada da noite anterior do qual ele morreu de amores, e isso era ainda pior, pois Beatriz iria embora com toda a fortuna.  Alexsander Windsor era um perigo para os negócios de Doroteia. Sem Beatriz a mulher se reduziria a nada. Não teria o dinheiro da herança e tampouco o dinheiro de suas clientes.  - Isso está fora de questão, milorde. Sem a minha ajudante eu ficarei sobrecarregada de trabalho.- - Coloque suas filhas para trabalhar, ou contrate alguém temporariamente. Além do mais, darei um grandioso p*******o pelos serviços prestados por Beatriz.- - Eu acho que seria ótimo para a minha prima. Ela trabalha muito, milorde, e faz os mais lindos vestidos de toda a Inglaterra, mas não é reconhecida pelo seu esforço.- Disse Katherine, ganhando olhares mortíferos de sua mãe e irmã.  - Então está decidido. Beatriz concordou em trabalhar para mim nesse período, e como ela ainda não tem vinte e um anos…- - Eu sou sua tutora legal e infelizmente, milorde…- - Madame, isso não é bem um pedido. Estou ordenando que libere sua sobrinha a ir comigo, ou do contrário, farei com que todos os meus amigos e familiares da alta sociedade deixem de comprar com a senhora.- Disse Alex rispidamente. Doroteia engoliu em seco, constatando que estava sem alternativas. - Quando pretende levar Beatriz?- Perguntou a mulher com os ombros encolhidos e a voz branda. - Hoje, no final da tarde. Recomendo que a libere mais cedo do trabalho. Sou um homem intolerante e não gosto de esperar- Alex ergueu o chapéu de forma galante para se despedir das mulheres presentes na sala, e caminhou para o lado de fora da casa.
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