Quão longe poderemos fugir?

1655 Palavras
Júlia estava prestes a desmaiar de tédio. Odiava aquelas reuniões inacabáveis, odiava principalmente o fato de precisar ficar muda como um enfeito de salão. Pena que ela também não era surda naquele momento. — Ao que tudo indica, muito em breve haverá uma nova guerra entre os Santiago e os Messina.— Comunicou Eugênio, indo direto ao ponto. Um burburinho de vozes tomou o ambiente. O único que Júlia não conseguia entender era o porquê de Rodrigo e Davi participarem da reunião, visto que nenhum dos dois levavam sangue Santiago nas veias. — Alguns dos Messina foram vistos pelas redondezas.— Explicou Arthur.— Inclusive, Francisco deu um recado para Rodrigo. — Foi isso o que me trouxe a fazer essa reunião.— Eugênio voltou a ter a palavra.— Mulheres e crianças precisarão se isolar fora de Aventine, precisamos proteger nossos herdeiros. Patrícia ficou de pé, transtornada, e caminhou rapidamente para fora da sala de estar. Júlia também ficou de pé e fez menção de seguir a tia, mas Eugênio não permitiu. — Deixe-a sozinha. Não é um assunto fácil para a Patricia… Foi na última guerra que tivemos com os Messina que a sua prima Inês faleceu… — Não vamos perder mais tempo.— Gabriel segurou a mão de Christina, sua esposa, em um gesto de afeto e proteção.— Hoje mesmo quero que vocês façam as malas e vão para bem longe daqui. — Eu não vou a lugar nenhum. Não abro mão da minha festa de noivado.— disse Júlia, relutante. — Sua irmã tem razão, Gabriel, não vamos nos precipitar.— disse Eugênio.— Eu acho que elas devem, sim, deixar tudo pronto, mas apenas para partirem no domingo logo cedo. — Oh céus… Tudo de novo… Esse maldito pesadelo de novo. Quando isso vai acabar?— Desesperada, Anastasia levou a mão ao peito. Davi, que até então estava silencioso, desvencilhou-se pelos cantos. Nada naquela sala o interessava, mas ele ficou estranhamente preocupado com o desespero da Patricia. A mulher encolheu-se no canto da sala de visitas, entre um sofá e outro, e pôs-se a chorar. Com os joelhos dobrados e o rosto coberto, a mulher convulsionava de tanto chorar. Ela deu um súbito sobressalto ao sentir uma mão tocar o seu ombro. Os olhos escuros e inchados de tanto chorar prontamente encontraram os do rapaz, que parecia solicito e preocupado. Ele levantou a Patricia do chão e a abraçou com força, novamente a mulher se permitiu desabar. — Eu não vou suportar reviver o p.ior dia da minha vida, Davi.— Murmurou a jovem, com dificuldade. — Essa maldita guerra que tirou a sua filha, não é? — A guerra anterior foi na fronteira entre Aventine e Rosa Rosso. Enquanto os homens lutavam, as mulheres assumiram o controle da fábrica. Eu fiquei no gerenciamento, sempre fui muito boa em colocar as coisas em ordem. Eu estava tão cansada… Me matava de trabalhar para garantir o sustento da família e também precisava cuidar da minha filha. — O seu falecido marido… — Aquele inútil estava viajando. Me casar com o Augusto foi um erro, mas foi o erro que me deu a pessoa que eu mais amei no mundo… A minha filha era tão perfeita, Davi. Era como se estivéssemos sempre conectadas. Era como se ela entendesse que eu estava cansada de tanto trabalhar. Acredita que ela não chorava? Ficava tão quietinha me assistindo lá na fábrica. — Ninguém deveria sentir uma dor como essa, Patricia. Ao menos a sua filha sabe que foi amada e que teve uma mãe que qualquer menina gostaria de ter. Uma mãe corajosa e dedicada. — Uma mãe que falhou no momento que ela mais precisou. — Não diga isso. Você é feita de carne e osso, você é humana. Não falhou com sua filha de propósito, eu tenho certeza. — Foi muito estranho, mas eu decidi que não me importa saber o que aconteceu, nada vai trazer a minha filha de volta. Na verdade, a verdadeira culpada fui eu, Davi. Eu não deveria ter dormido. — Você não é uma máquina, Patricia. Estávamos em tempo de guerra, você precisou se virar sozinha. Se tem algum responsável, esse responsável é o pai da Inês que não foi homem de comparecer com o sustento da família. — A culpa é minha, Davi, e eu nunca neguei, mas já me perdoei.— A mulher respirou fundo após mais algumas lágrimas descerem por suas bochechas.— É claro que eu não falharia de propósito com a minha filha. Patricia ficou trêmula ao viajar naquele passado de horrores. Primeiro, ela se certificou de que todas as portas estariam fechadas, depois, deitou no sofá da sala de estar de sua casa e desabou em um sono profundo. A pequena Inês, de apenas um ano e meio, esperta e cheia de vida brincava pela casa, no limite estabelecido por sua mãe. A menina chegou a ouvir o barulho da porta abrir e seguiu o som até o lugar específico. Patricia acordou com o barulho dos latidos de Pepe, o seu cão. Ela procurou por Inês pela casa, mas não havia um sinal da menina. Foi então que o seu coração começou a bater mais forte. Ao seguir os sons do cachorro, ela se deparou com a p.ior cena de sua vida: a sua filha estava dentro da piscina, desacordada. Ao voltar para o momento atual, Patricia ainda tinha a sensação de carregar no colo a sua filha pela última vez. — Ela não estava roxa, não parecia ter se afogado. Eu simplesmente não conseguia acreditar… Não conseguia acreditar que estava segurando o corpo sem vida da minha filha. Davi não sabia o que falar, por isso, optou pelo silêncio. Na maioria das vezes as palavras não serviam de muito, então, ele apenas apertou Patricia contra o seu corpo. — Aqueles malditos abutres dos repórteres logo invadiram a minha casa. Tantas colunas especulando sobre a morte da Inês… Até um processo quiseram me colocar. Eu passei meses sobrevivendo a base de remédios, quase fui parar em um sanatório. Davi lembrava bem. Ele era apenas cinco anos mais novo do que Patricia, não estava na cidade, mas havia escutado várias versões da história. — Tudo o que eu queria era olhar novamente nos olhos escuros da minha filha e ver aquele brilho que só ela tinha. Aquele brilho de amor. — A vida é cheia de mistérios, Patricia. Eu tenho certeza que algum dia vai encontrar esse brilho novamente. … Júlia estava a flor da pele. Primeiro, estava preocupada por Patricia que foi obrigada a reviver todo o seu pesadelo com a possível guerra que provavelmente iria acontecer. Júlia ficou ao lado de sua tia até que a mesma adormecesse com a ajuda de calmantes pesados. Patricia chegou a trocar algumas palavras com a sobrinha, antes de perder toda a coerência da conversa. — Desde que a Inês morreu, eu não consigo mais dormir. Qualquer barulho, pelo mínimo que seja, me faz acordar.— Murmurou Patricia, com a cabeça deitada no travesseiro. Júlia acariciava os cabelos castanho-acobreados da outra. Ela ouvia a tia com atenção, até quando a mesma começou a mencionar bananas com asas que perseguiam os pássaros com orelhas de cachorro. Depois, Júlia deixou a sua tia dormir e foi diretamente ao encontro do Tom. Já era final da tarde e a jovem estava ansiosa para encontrá-lo. Queria muito desabafar e contar tudo o que estava acontecendo, mas lhe faltava coragem. Júlia já havia decidido que só revelaria a sua verdadeira identidade no sábado, quando os dois estivessem fugindo. No fundo, tinha medo de assustar o Thomás com toda aquela coisa de guerra entre famílias. No fundo, ela queria inventar uma vida nova para si e esquecer de toda aquela confusão que a rodeava. — Estou te achando um tanto quieta demais.— Observou Tom, sentado ao lado dela na toalha de piquenique. Involuntariamente Júlia abriu um sorriso largo ao ver o rosto dele tão próximo. Ali, na vila, poucas pessoas circulavam pelo ambiente do parque, mas luzes de candeeiros iluminavam o espaço. Era praticamente um piquenique a luz de velas. — Apenas estou ansiosa para o final de semana. Ansiosa, nervosa, temerosa também… — Tudo vai dá certo, meu amor. Ambos teremos uma festa para ir. Uma festa que vai abafar a banca. Júlia pensou em perguntar sobre a festa que Tom iria, mas teve medo dele também fazer perguntas. Tudo o que sabia era que se tratava da festa de noivado do primo de um colega de trabalho. Júlia também inventou uma desculpa semelhante, afinal de contas, sempre existiam pessoas casando em Aventine. — As festas daqui nunca abafam a banca, querido. Apenas as das famílias tradicionais de Aventine. E olhe lá. — O que sabe sobre as famílias tradicionais daqui? Digo, você nunca me falou sobre a sua. Sempre conversamos profundamente sobre muitas coisas, mas nunca sobre família. — Você também nunca falou da sua.— Júlia devolveu a acusação com outra. — É verdade. Bom, vamos fazer um pacto. No dia de fugirmos te contarei tudo sobre a minha família e você me conta sobre a sua. Depois disso, deixaremos o passado para trás. — Deixaremos o passado para trás.— Concordou Júlia. A moça tomou a iniciativa de começar um beijo tranquilo que prontamente se intensificou. Júlia deitou o corpo do rapaz sobre a toalha e colocou o seu tronco sobre o dele. O homem acariciou as costas dela cobertas pelo tecido suave do algodão e a pressionou contra si. Ele queria sentir mais da Sofia, exatamente como no final de semana. A moça deitou-se ao lado dele logo depois, sendo envolvida por um de seus braços fortes. Com a cabeça encostada no p.eito do homem, Júlia suspirou e fechou os olhos, admirando o céu já coberto de estrelas. — Quão longe poderemos fugir?— Perguntou a garota. — Para onde desejarmos.— Respondeu Tom.
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