DA.VIDA XIII

1734 Palavras
Ao chegar em casa decido que seguiria rapidamente para o meu quarto, assim não teria de contar o fracasso que a minha noite havia sido. Ao passar pelo quintal e aproximar-me da porta de entrada, sou surpreendido por uma conversa entre Isaque e Rebeca, eles estavam deitados no sofá abraçados mutuamente com a televisão ligada em som baixo. — Ele foi ao médico por estes dias, está com início de anemia. Não se alimenta direito e nem mesmo cuida da saúde física ou mental. — Rebeca suspira e Isaque lhe acaricia os cabelos. — O seu pai nunca esqueceu da sua mãe, ele amou-a completa e profundamente. Eu também me sentiria desolado se a perdesse. — Confessa e Rebeca sorri levemente o beijando nos lábios. — Eu deveria ir e passar alguns dias com ele, posso pedir licença no hospital e ajudá-lo com a alimentação, não quero perder o meu pai também. — Não precisa, eu irei. — Digo passando pela porta. Ambos se afastam e sorriem para mim. — Posso ir e ficar com o meu pai até que ele melhore. — E ai, cara! Como foi o encontro? Se divertiu com o filme? — Isaque indaga e suspiro, abaixando a minha cabeça. — Rebeca, não precisa deixar a sua família para ir cuidar de alguém que não se importa consigo mesmo. — Respondo, subindo as escadas e esbarrando em Yasmim que seguia para o seu quarto ao lado do meu. — Ei! Como foi o tal jantar? — Indaga e segue-me, passando pela porta do meu quarto logo após mim. Retiro os meus all-Star e os coloco corretamente sobre a sapateira de madeira crua. Também retiro a minha jaqueta a coloco no cabide do armário e olho para Yasmim aguardando que saía, só assim poderia trocar de roupa. — Não irei sair até que diga o que aconteceu. Estava tão animado quando saiu e agora parece ter regredido umas vinte sessões de terapia. — Comenta retirando a toalha que estava nos seus cabelos e secando os fios castanhos. Ela não iria sair dali até eu contar todo martírio daquela noite terrível. — Eu só preciso parar de ser t**o em achar que consigo agir como um ser humano normal. Enquanto pareci um galinha, também agi como um… um esquisito. Ela estava linda Yasmim, seria egoísmo meu querer empurrar-lhe uma vida tão fracassada quanto a minha. — Sabe, você irrita-me. Toda essa sua fala de vítima faz-me querer gorfar. Olhe para mim, Davi … eu sou linda, mas nenhum cara chega em mim por conta de acharem que toda garota com síndrome de Down é fofinha demais para eles. Agora, o TEA faz-lhe parecer um cara misterioso, a sua ignorância é taxada como virilidade. Do que tá reclamando? — Foi para isso que veio até aqui? Para me deixar estressado? Pois conseguiu! Sua insuportável! — Grito. — Mais do que você, com certeza não sou!! — Ela retruca e os seus pais chegam ao quarto nos olhando assustados. — Não sei porque a mamãe criou você! — Deve ser porque a minha mãe morreu e o meu pai odeia-me!! Mas não se preocupe, vou embora amanhã!! — Yasmim, vá para o seu quarto! — Isaque ordena e a garota obedece, pisando firme no chão até o seu quarto. — Não considere o que a Yasmim falou, ela apenas está irritada. Todos nós somos imensamente gratos por ter-lhe criado, Davi. — Rebeca se aproxima e afasto os meus pés da sua direção. — A sua irmã esta certa, não temos do que reclamar. Você é como um filho para nós. — Isaque complementa o que a sua esposa dissera e respiro fundo, sentando-me na cama. O meu corpo se movimenta para frente e para trás, as minhas mãos movem-se descontroladamente e choro, por me lembrar de quem eu realmente sou, um grande fardo. — Mas, eu não sou. Amanhã mesmo irei mudar para a casa do meu pai, não quero que perca mais ninguém. — Falo para Rebeca que já se encontra de olhos marejados. Aquela noite não havia sido fácil, depois de muito tempo me mantendo estável tive uma forte crise sensorial, tendo de me ferir para reencontrar meu próprio corpo. Como Yasmim dissera, parecia ter regredido diversas sessões de terapia, então fui obrigado por minha irmã a ir até Rafaela, sua "parente" e terapeuta. — Olá Davi, tudo bem contigo? Fiquei muito feliz quando Rebeca me contou que gostaria de vir e me ver. — Ela diz abrindo a porta de seu consultório para que eu entrasse. O lugar era bastante estereotipado, como todos os outros milhares de consultórios terapêuticos. Havia um sofá confortável azul escuro a frente de sua poltrona, algumas plantas verdes presas nas paredes em tons pastéis e persianas em duas janelas logo ao lado de uma pequena estante com livros de estudo. — Na verdade fui coagido, se posso dizer assim. Minha irmã tem bastante poder sobre mim. — Falo entre os dentes e ela sorri, apontando para que eu me sente no sofá. — Eu sei que a Rebeca pode ser bastante persuasiva quando quer. Sabe, quando eu a conheci tivemos alguns desentendimentos, mas foi ela quem me fez perceber como a vida poderia ser vivida de uma melhor forma. — Conta se sentando na poltrona e esticando os pés com pantufas. Observo aqueles sapatos vermelhos, distintos do que me era costumeiro quando estava a frente de um psicólogo. — Ahh desculpe, acabei me atrasando e esqueci de colocar os sapatos. — Ri e acabo sorrindo também, me deixando soltar os braços sobre meus joelhos. — Como vai a faculdade, Davi? — Acredito que bem. Sempre tiro notas boas, não tenho grande dificuldade com a área da saúde, toda minha família é médica ou afins. — Respondo e Rafaela morde o lábio. Ela tem a boca pequena e seus cabelos são curtos e ondulados. Ela usa uma base clara no rosto e batom rose. Rafaela e minha irmã se parecem. — Disse que se atrasou, mas conseguiu passar maquiagem? — Pergunto curioso. — Não acha que deveria fazer algo que o desafia? — Indaga, fazendo com que eu me esqueça da minha pergunta. — Digo, em relação a sua faculdade. Por que fazer medicina, se é algo tão fácil para você? — Como eu disse, toda minha família faz parte da área da saúde. — Respondo e Rafaela me observa cautelosamente. — A minha mãe era médica, pelo que eu soube. — Não, a sua mãe era assistente social. Ela largou a faculdade de medicina ainda no início, descobriu que não era o que queria. — Rafaela conta e a olho sem entender o que dizia. Nunca perguntei a minha irmã o que minha mãe realmente havia sido ou como viveu sua vida, simplesmente deduzi pelo material que me havia disponível. — Eu não sabia, pensei que meus pais haviam se conhecido em um hospital. Que minha mãe era médica, assim como o Gabriel. — Digo envergonhado. Era constrangedor não saber sobre minha própria família. — Davi, se eu puder lhe dar uma tarefa para estes próximos dias...quero que pergunte sobre a sua família, sobre quem eles eram. Não para se tornar igual, mas para entender quem você é de verdade. — Rafaela diz, aguardando uma resposta. Aquele sentimento de vergonha não era como o da noite anterior, esse doía ainda mais por me enviar a um lugar da minha vida, que não gostava de visitar. {...} Eu não havia gostado da sessão de terapia com Rafaela, pois o que ela me propusera deixara meus ossos doloridos. Pedalo com minha bicicleta em direção a casa de Gabriel, Isaque levaria minha mudança a noite e eu aproveitaria para ver como meu pai estava naquele domingo. Era exaustivo em apenas imaginar por todas turbulências que passaria ali, eu teria de reter tantos sentimentos que não sabia se seria capaz de me manter são. Abro o portão, Rebeca havia me dado uma chave reserva que tinha em casa. Subo as pequenas escadas da entrada e sinto meu peito se apertar. Havia tantos anos que não passava por aquela porta tão grande anteriormente e agora minúscula pela minha altura atual. A casa está escura e silenciosa, me pergunto se este lugar um dia fora luminoso e ventilado. Pelas poucas fotos que vi de Agatha, ela parecia ser alguém que amava o sol. Meu corpo estremece e sinto que era chegado o momento de começar a reter as sensações. Me belisco e tento focar na dor de meu braço, pois o que havia em meu coração era sombrio. A sala é conjugada com uma grande cozinha, existem prateleiras de madeiras e estão abarrotadas por títulos de literatura cristã e brasileiras. Não pareciam livros guardados, mas utilizados para leitura com frequência. — Pelo menos não se deixou tornar um t**o. — Digo a mim mesmo e continuo a caminhar. O quarto no andar de baixo está aberto, ainda com minhas coisas de criança, fecho a porta com rapidez estava tentando não ter um colapso nervoso. Olho ao fim da cozinha, há uma porta de vidro e um quintal com cadeira e mesa, era o jardim que mamãe criara. Meus ossos se contorcem e deito-me no sofá, coloco minha cabeça sobre sua lateral e respiro fundo vagarosamente, lagrimas descem por meus olhos e choro copiosamente. Há tanta dor dentro de mim, eu me sentia injustiçado por ter sido o único que não a conheceu, que não pode participar do amor que diziam ser o maior deles. Por que ela se foi? Por que agiu de forma tão egoísta? E ele, por que não a salvou? — Davi, o que faz aqui? — Ouço sua voz, ela é rouca e cansada. Tento me levantar, mas ainda estava paralisado pelo shutdown, me perdia entre o que era real e o que fazia parte da amargura que me invadia. — Davi, você está bem? — Ele se aproxima e balança meu corpo, não sou capaz de dizer para que me deixasse, para que não fizesse nada e simplesmente esperasse tudo aquilo passar. — Ah meu Deus, o que eu faço? Ei, você vai morrer? Eu mato a todos que amo?! — Indaga a si mesmo, se ajoelhando a minha frente e respirando ofegante. — Não faça isso, tá bem? — Fala e me prende em seus braços, aquela havia sido a primeira vez que Gabriel me abraçara.
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