— Isso é um absurdo!— Exclamou Júlia, exasperada.— A senhora por um acaso sabe de quem se trata este homem?— ela cruzou os braços de imediato.
Júlia estava do lado de fora da sala de aula, de frente para Francisco e ao lado da Soraia. Ela contava com a intercessão da diretora para devolver a ela o posto de professora voluntária de matemática.
— Sinto muito Júlia, mas você disse que iria se afastar por conta de seu casamento. O senhor Francisco fez uma experiência e os alunos se deram muito bem com a didática dele.— Explicou Carolina.
Júlia bufou.
Francisco deu um sorrisinho vitorioso.
— Esse homem é um bandido da p.ior espécie! Não pode submeter as crianças a conviverem com esse tipo de pessoa!
— Júlia você está confundindo o senhor Francisco com o senhor Fernando.— Interferiu Soraia, tentando amenizar a situação.— O senhor Francisco é contador, seu colega de profissão.
Francisco deu de ombros, novamente vitorioso.
— Isso é um absurdo.— Júlia resmungou.
Por respeito a Thomás, ela não expôs o primo dele como realmente deveria.
— Eu tenho uma alternativa. Já que você vai continuar conosco, o que acha de trabalhar comigo na contabilidade das escolas? As doações que recebemos precisam de um controle de orçamento. Já que é contadora e de confiança, o cargo seria perfeito para você.
Os olhos da Júlia brilharam com a oportunidade.
— Eu quero, sim!— Respondeu de imediato.
— Perfeito, assim evitamos problemas. Mas será que o seu pai e o seu noivo não se chatearão?
— Não vão porque se trata de trabalho voluntário. Para eles, estou apenas praticando a minha religiosidade. Claro, faço por amor as crianças, mas estou muito feliz da oportunidade de trabalhar com a minha área de formação.
— Eu fico feliz por você, Júlia. Já que são sob essas condições, não vejo como perigo.— Opinou Soraia.
Júlia voltou-se para a amiga com um sorriso no rosto.
— Eu acho que você está mudando. Não é mais aquela Soraia quadrada que acha que tudo o que uma mulher pode ter na vida é um bom casamento.
— Não se engane. Eu ainda acho que um bom casamento é essencial na vida de uma mulher. O que não significa que não possamos estudar, todos têm direito ao aprendizado.
— E quando será o casamento da senhorita? Também irá se afastar do colégio?— Perguntou Francisco com ar de provocação.
— Nunca.— Soraia o olhou de soslaio.
— Sendo assim, fico tranquila por não perder pessoas de confiança. Senhor Francisco e senhorita Soraia, não se atrasem para as aulas. Eu vou apresentar para a Júlia o setor financeiro da matriz escolar.— Empolgada, Carolina tomou a iniciativa de caminhar para a frente.
Júlia foi logo atrás dela.
Em algumas horas Júlia já estava familiarizada com o seu novo trabalho. Ela organizou todo o orçamento das escolas de caridade, contabilizou quanto gastariam em reforma, manutenção e material escolar e também das doações a mais que precisariam para os presentes de natal, já que se aproximava do final do ano.
No final de seu expediente, ela deparou-se com Thom logo no portão do colégio, como tinham combinado.
— Eu encontrei a Soraia e o Francisco, soube que eles estão trabalhando juntos como professores voluntários, confesso que me surpreendi com a atitude do meu primo. Os homens da minha família sempre foram brutamontes demais para se doarem a caridade.
— Confesso que fiquei uma arara. Mas agora estou feliz porque estou trabalhando com a contabilidade dos colégios.
— E eu fico feliz por você.— disse Thom, sem desviar os olhos dos dela.
Prontamente, ele a puxou para um beijo breve. Tinha medo de prolongar e acabarem sendo vistos por alguém conhecido.
— Agora eu vou conseguir te ver todos os dias sem nenhum problema. Bom, mas precisamos agir rápido, o meu casamento com o Rodrigo se aproxima e só de imaginar aquele crápula colocando as mãos em mim…
Thom estremeceu com a hipótese.
Não suportaria que nenhum outro homem tocasse Júlia.
— Terei uma reunião familiar com o meu irmão e primos nessa semana. Vou convencer o Matt a tentarmos um acordo de paz com o seu pai. Sendo assim, eu serei o intermediário.
— Pretende mesmo revelar que você é um Messina?— Júlia mordeu os lábios, preocupada.
— Não temos outra alternativa.
— O meu pai não vai acreditar que o Rodrigo é um traidor, não sem provas.
— O desgraçado é muito safo. P.ior que o seu pai e ele têm interesses em comum.— Thom levou a mão ao queixo, pensativo.
— Eu quero ir na reunião da sua família.
Thom piscou os olhos, surpreso.
— De forma nenhuma, eu não vou te levar na boca do lobo.
— O assunto também é sobre mim.
— O assunto é para que eu tente convencer a minha família a não te matar e a fazer um acordo de paz com o seu pai.
— Eu vou estar com você, eles não vão me matar.
— Eu não confio nisso. O ódio que os Messina e os Santiago sentem um pelo outro ultrapassam gerações.
— Eu sinto muito mesmo que o meu pai tenha matado o seu.— Júlia encarou os próprios pés, envergonhada.
— Não foi sua culpa.— Thom levou o indicador ao queixo da mesma, erguendo-o.— Não precisam existir mais vítimas por conta dessa guerra.
— Eu só queria entender como tudo isso começou e quando começou. Quem foi o primeiro Santiago ou o primeiro Messina a travar uma guerra?
— Eu acho que eu sei de uma pessoa que sabe, mas ela m.al fala devido à idade avançada. Esquece de muita coisa do presente, mas lembra de muita coisa do passado.— disse Thom, pensativo.
— Quem?— Perguntou Júlia, curiosa.
— Minha bisavó Margarida. Minha família inteira está hospedada há poucos quilômetros, na cidade fronteira entre Aventine e Rosa Rosso. Vamos aproveitar que os meus primos estão trabalhando e vamos falar com a vovó Margarida.
Júlia aquiesceu, concordando.
Thom dirigiu por menos de quarenta minutos até a cidade-fronteiriça. Ele estacionou o carro de frente para a casa e adentrou o ambiente na companhia da Júlia.
A jovem não deixou de observar o quanto a casa, apesar de grande, era modesta. Os móveis eram de madeira de boa qualidade, mas ainda assim um tanto rústicos. Subiram apenas um lance de escadas e foram direto para o quarto da bisavó do Thom.
A mulher estava sentada na poltrona, de frente para a lareira. Já estavam na primavera, mas as vezes esfriava muito naquela época do ano.
— Boa tarde, bisa. Sou eu, seu bisneto favorito.— Brincou Thom, pousando um beijo na testa da mais velha.
Júlia sorriu diante o gesto de carinho.
— Genaro?— Perguntou Margarida, com os olhos brilhando.
— As vezes ela me confunde com o meu bisavô.— ele sussurrou para Júlia, em seguida, apontou para o homem que estava no retrato.
A foto era de 1883, quando o bisavô do Thom tinha exatamente a idade dele.
— Você parece mesmo com ele.— Comentou Júlia, impressionada.
— Genaro, querido.— Margarida segurou uma das mãos do Thom.
— Sim, querida?— Perguntou Thom.
— Use o seu casaco, o tempo vai esfriar.
— Também precisa usar o seu. Fica ainda mais bonita com ele, sabia?— Thom endireitou o casaco da mulher, que já quase caia por seus ombros estreitos.
Margarida deu uma risadinha de flerte.
Júlia não evitou se emocionar. Sessenta anos depois e Margarida ainda lembrava do marido com tanto amor.
— Meu bisavô tinha 27 anos naquele retrato. Poucos dias depois ele faleceu. Minha bisavó e ele tiveram quatro filhos. O meu avô Pietro e os meus tios: Teobaldo, Lorenzo e Frederico.— Thom explicou para Júlia.
— O maldito Henrique Santiago matou o meu Genaro!— Exclamou Margarida, de repente, ficando agitada ao ter um breve momento de lucidez.
— Henrique Santiago é o meu bisavô.— Murmurou Júlia para Thom.— Meu avô sempre falava dele.
Júlia pareceu entristecida após lembrar do avô.
— O que houve?— Perguntou Thom.
— O meu avô se chama Arthur Santiago, o meu irmão mais velho foi batizado com o mesmo nome dele. Meu avô morreu quando éramos crianças, em um confronto com os Messina. Meu tio contou que Pietro Messina deu o tiro que acabou com a vida dele.
Thom suspirou, melancólico.
De fato, muitas gerações de sangue uniam os Santiago e os Messina.
— Eu sinto muito.— Murmurou Thom para Júlia.
Ele afastou algumas mechas dos cabelos dourados da jovem que ameaçavam cair no rosto.
— Não foi sua culpa.— Júlia pousou um beijo na mão dele.
— Bisa…— Thom voltou-se para a mais velha e se ajoelhou na frente dela.— Conte-nos como começou essa guerra entre os Messina e os Santiago.
— Há duzentos anos, no século 18, Helena Albuquerque estava de casamento marcado com Octávio Messina, quando se apaixonou por Luís Santiago, o melhor amigo dele.
Júlia e Thom se entreolharam, já sabiam o caminho que aquela história tomaria.
— Helena desistiu de casar com Octávio e fugiu com Luís. Os dois se casaram e meses depois voltaram para Aventine. Não suportando a traição, Octávio deu um tiro no melhor amigo dele e só poupou a vida da Helena porque ela estava grávida.
— E o que aconteceu depois?— Perguntou Júlia, curiosa.
— Octávio fugiu de Aventine e foi para Rosa Rosso com a família. Anos depois, quando já estava casado e com filhos, os irmãos do Luís descobriram o paradeiro do Octávio e quiseram se vingar. Octávio morreu da mesma forma em que matou o melhor amigo, com um tiro no p.eito. Desde então, os Messina e os Santiago vêm se dizimando.— Continuou Margarida.
— Então a briga não começou por causa da concorrência de mercado, isso veio em segundo plano.
— Os negócios das duas famílias, muito antigamente, funcionavam em conjunto. Depois do desentendimento entre Luiz e Octávio, os Messina e os Santiago viraram rivais tanto no mercado das pedras preciosas e dos metais nobres, quanto principalmente no amor.— disse Margarida.
Novamente Júlia e Thom se entreolharam, pareciam perplexos com a história.
De repente, a porta do quarto da Margarida abriu, assustando os dois.
Thom paralisou ao se deparar com a última pessoa que esperava encontrar.
— Matteo?— A voz do Thom saiu esganiçada.
— Não esperava te encontrar aqui, fratello.— Em seguida, o homem para a moça.— Você deve ser a Sofia. Ou será que devo chamá-la de Júlia? Júlia Santiago.