DA.VIDA XI

1940 Words
Aquele era o primeiro dia após a fatídica notícia de minha notória e prematura morte, contando a partir de hoje se tudo ocorresse como o planejado pela própria vida eu morreria daqui há duzentos dias. Apesar de saber o poder que havia em Deus eu não o pedi que me curasse e operasse um milagre como sei que ele poderia fazer, simplesmente o permiti agir com total liberdade em minha vida. Eu cria que ele poderia me curar, mas também estava pronta para encontrá-lo. Mas, antes que pensem que sou uma completa santa sem nenhum desejo egoísta, eu fiz um pedido após uma conversa despretensiosa com um certo alguém. — Saanvi, ei! — Davi acena repetidamente. Sorrio e caminho em sua direção, ele está sentado a mesa do refeitório, sozinho como não era de costume. — Por que está sozinho? Onde estão suas amigas? — Pergunto, olhando de um lado para o outro. Ele me chama usando a mão e sento a sua frente, me aproximando com a cabeça. — Quis sair antes para te ver. — Sussurra em meu ouvido e acabo rindo. Aquela havia sido a frase mais doce que ouvira de Davi em todos os anos que o amo sozinha. — Tem um filme que vai sair, é de terror. Você parece gostar de algo assim... — Como pode pensar algo tão certo assim sobre mim? — Zombo e ele me olha sem entender. — Foi uma piada, Davi. — Finjo irritação e ele ri falsamente. — Está cada vez pior. — Me desculpa, ainda não aprendi diferenciar completamente. — Conta. — Mas, me fale. Quer ir? — Pergunta ansioso. Eu iria dizer que sim, mas me lembro da grande notícia do dia. — Davi, sabe o que é insuficiência cardíaca? — Pergunto. Davi retira um sanduíche da mochila, ele descasca as bordas dos pães de forma e os entrega para mim na tampa da vasilha. — Não vou comer isso. — Pensei que estivesse com fome. — Fala. — Então por que não me dá o sanduíche? Quer que eu coma bordas? — Indago, cruzando os braços. Por que ele estava tão bobo naquele dia? — Mas, se eu lhe der vou ficar com fome. Coma as bordas, eu não gosto. — Fala me olhando e desviando em seguida. Minhas sobrancelhas se arqueiam, eu estava tão irritada que senti que iria morrer ali mesmo. — Pare de fazer careta. Estou apenas fazendo uma piada. — O que? — O olho sem entender. Davi retira de sua bolsa outro lanche e me entrega. — Por que fez isso? — Porque gosta de piadas. Pensei nela a noite inteira. Agora coma e pergunte novamente o que havia dito antes, não gosto de responder de forma avulsa. — An...tudo bem. — Sorrio de lado. — Sabe o que é insuficiência cardíaca? — Sim, eu sei. A insuficiência cardíaca é uma síndrome clínica caracterizada pela incapacidade do coração de atuar adequadamente como bomba, quer seja por déficit de contração ou de relaxamento, comprometendo o funcionamento do organismo, e quando não tratada adequadamente, reduzindo a qualidade de vida e a sobrevida. Os principais sintomas são falta de ar, inchaço no corpo e nos pulmões, cansaço excessivo, tosses entre outros. Também existe algo que pode ajudar... — Jura? O que?! — Sorrio animada com suas palavras. Ele morde um pedaço do pão e mastiga vagarosamente. — Davi, o que pode ajudar? — Tomar bastante líquido, ajuda a fazer xixi e diminuir o trabalho do coração. Mas, claro que isso não vai trazer a cura, existem tratamentos porém a melhor forma de resolver seria uma cirurgia de troca de válvula para os mais leves e um transplante para um caso grave. — Entendi... — Murmuro. Davi me olha e sorrio, tentando não deixar transparecer o que eu sentia naquele momento. Eu estava tão assustada, talvez toda minha coragem havia ido embora e me deixado sozinha. — Falando sobre coração, você sabia que nosso coração bate setenta e duas vezes por minuto. Ao todo isso daria 104 mil batidas por dia... Não é incrível? — Sim, é incrível. Quantas batidas dariam em duzentos dias? É que sou meio r**m de conta... — Sorrio e Davi retribui um sorriso com os olhos um pouco fechados. — Daria em média vinte milhões e oitocentos mil batidas. Por que está perguntando tudo isso? É alguma atividade escolar? — Questiona e movo a cabeça em discordância, mordendo o sanduíche. — Hummm, está delicioso. Você quem fez? — Indago e Davi concorda orgulhoso. — Parabéns, um ótimo cozinheiro. — Respondo e comemos em silêncio. Sim, eu fiz um pedido egoísta. Pedi a Deus que antes de me levar desse a mim de presente vinte milhões e oitocentos mil batidas, para que eu pudesse amar minha família e ser amada por Davi. Davi Sullivan Ao chegar em casa e observar a arca que se encontrava semi pronta no jardim, acabo por pensar se aquela ainda era a melhor escolha. Meus dias nunca foram os melhores, o autismo vinha acompanhado de ansiedade, angústias e claro alguns episódios um tanto desastrosos socialmente. Mas, quando estava ao lado de Saanvi tudo parecia como uma ilha distante e silenciosa, minha mente não gritava, meu corpo não ardia e meu coração não saltava trazendo aflição. Eu me sentia como alguém completamente típico, chato e sem graça como todos os outros seres humanos. Será que apesar de eu ter matado minha mãe, ainda assim o todo poderoso me daria a chance de ser feliz e aprender o que era o amor? — Ei Davi, tudo bem? — Isaque se aproxima, segurando uma maleta de ferramentas. Ele havia vindo para ajudar-me com a construção da arca. — Trouxe alguns utensílios que vão facilitar o trabalho... — Isso é bom, Isaque. Mas, será que podíamos dar uma parada? Ando cheio de atividades na escola por conta das provas. — Digo e me surpreendo com a capacidade nova que havia adquirido, ser capaz de inventar desculpas. — Claro, como quiser. Então vamos comer algo, o que acha? Estava pensando em cachorro quente! — Fala animado, pondo as ferramentas no chão e se aproximando. — Acho que, vou ter de recusar. Assisti um documentário sobre a produção das salsichas. Se quiser, lhe mando por mensagem. — Respondo e meu tio discorda com a cabeça, repetidamente. — Como dizia o saudoso Cypher em "Matrix: "a ignorância é uma benção." — Sorri como um grande sábio e apenas concordo, sem entender do que ele falava. Eu não era do tipo apreciador de filmes ou sei lá o que "Matrix" era. {...} — Para onde vai assim? — Rebeca sorri ao me ver usar roupa social. Eu não tinha muita experiência com toda aquela situação, na verdade, não tinha nenhuma. — Ele vai a um encontro com a Saanvi. — Yasmin comenta, pulando no sofá e me assusto ao vê-la passar tão rapidamente por mim na escada. A síndrome de Down, havia lhe dado super poderes. — Ah eu não acredito, isso é tão lindo! — Rebeca fala, entregando um prato para Isaque secar, enquanto ela lavava o resto. — Confesso que nunca pensei que esse dia chegaria. — Tenta limpar os olhos com sua blusa de manga longa. — Aqui princesa, seque com o guardanapo. — Seu esposo lhe entrega um papel e Rebeca cai no choro. — Isso é tão constrangedor, vocês poderiam parar, por favor. — Peço, sentindo a ansiedade me tomar. — Talvez eu deva desistir, isso não é para mim. — Foi o que eu disse. — Yasmim fala, se deitando no sofá e ligando a televisão com o controle remoto. Me preparo para subir às escadas e Rebeca me puxa pelo mão. — Davi, por que isso não seria para você? — Indaga me olhando e aponto para mim mesmo. — Por causa do autismo? Desde quando deixou de fazer algo por conta desse amigo intruso? — Nunca. — Murmuro abaixando a cabeça. Ela toca meus cabelos ruivos e os ajeita para o lado. — E se nada der certo? Se eu tiver uma crise ou agir como um esquisito? — Vai dar tudo certo, mas se isso acontecer você sabe que pode me ligar em qualquer hora, que vou correndo te salvar. O amor é a mais linda obra de Deus e todos merecem senti-lo e aprecia-lo. — Diz por fim, beijando minha bochecha. — Mas, ainda acho que deveria colocar algo mais casual. Não quer parecer um pastor no seu primeiro encontro. — Isaque orienta e Yasmim ri, concordando ao me observar. — Tudo bem, vou colocar jeans. Mas, o suéter me deixa protegido, então irei com ele. — Respondo e os três concordam, olhando para mim como bobos. Apesar de todo aquele momento vergonhoso, eu me sentia animado para estar com Saanvi e ao mesmo tempo um medo percorria todos meus ossos. — Ela vem te buscar? — Rebeca olha o relógio e assinto. Estamos os quatro na porta de casa aguardando a chegada de Saanvi. — Não quis ir de bicicleta? — Ela disse saber dirigir, não quis parecer chato em recusar. — Respondo entre os dentes. Eu estava tão nervoso, se Saanvi demorasse um pouco mais eu desmaiaria. Um carro popular se aproxima e freia rapidamente. — Ah meu Deus, acho que deveríamos levá-los no meu carro. — Isaque oferece ao se assustar com a forma estranha que Saanvi dirigia. — Boa noite, pessoal!! — Cumprimenta como uma subcelebridade. — Vamos Davi? Não se preocupem, só tenho problema com o freio. — Ri de forma nervosa. — Saanvi, cuide do Davi por favor. Ficamos preocupados por ele não ter costume em sair. — Rebeca cochicha, mesmo sabendo que estou ao seu lado escutando perfeitamente. — Não se preocupem, está comigo é a mesma coisa que estar com Deus! — Esse é o problema, não queremos que ele encontre Deus por agora. — Yasmin também cochicha e solto o ar dos pulmões. — Estou escutando vocês, será que podemos ir? Saanvi. — Imploro e a garota concorda abrindo a porta do carona para que eu entre, ela se curva sobre mim para pegar o cinto de segurança e meu corpo gela. "Por que toda essa aproximação sem aviso prévio?" — Eu-eu consigo pegar, não se preocupe. — Gaguejo e a mesma levanta as mãos pedindo desculpas. — Tchau querido, tenha uma ótima noite. — Rebeca chora, acenando com a mão e sinto que irei morrer de tanta vergonha. Aquele era um sentimento novo e não havia gostado dele. Saanvi entra no carro e dá um engate rápido, nos fazendo seguir de forma brusca, meu coração dispara e agradeço por ter colocado o cinto. — Ah meu Deus, desculpa. — Gargalha, pondo a mão na boca e segurando o freio. — As duas mãos no volante, eu imploro. — Peço. Pela primeira vez temia por minha vida, talvez essa seria minha cura para o desejo de morrer, ser testado constantemente por Saanvi no volante. — Eu não sou muito boa com a direção, mas não se preocupe sei o mínimo para nos levar são e salvos até o restaurante. Desculpe, eu mudei de ideia sobre o lugar, não gosto de filmes aterrorizantes. — Tudo bem, não tem problema para mim. — Minto. Eu não havia me preparado para um restaurante barulhento e cheio de pessoas, mas sim para um cinema com fones isoladores de som. — Saanvi, eu queria lhe dizer algo, mas vou esperar que cheguemos a um lugar seguro. — Claro, desculpe mais uma vez. — Sorri, olhando para a direção e respiro fundo, buscando trazer paz ao meu coração tão ansioso.
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