CAPÍTULO DOIS

1118 Words
Agachado, com a voz carinhosa, um amor transbordando nos olhos, como se conhecesse a senhora, desmanchou o coração de Lara e ela teve certeza de que estava mesmo em um dia sensível. Claro que não era porque ele era alto, as costas largas, a voz grossa e rouca. Muito menos porque estava com uma barba de um dia, não, nada disso. Não era por isso que ela o imaginou sem roupas e usando uma voz carinhosa, falando no ouvido dela. — … comeu algo? Minha nossa, ele estava falando com ela. Estava olhando para ela e instintivamente ela passou a mão pelos cabelos. — Desculpe. — Estava perguntando, já que me disseram que você estava com ela, se ela comeu algo. – Perguntou o Socorrista. — Não sei, desculpe. — Imaginei. Opa, pareceu que ele estava decepcionado com ela?! Como assim? Ela realmente não sabia se a senhora tinha comido. — Acho que esse foi o problema, eu queria caminhar pela praça e ia tomar o café da manhã quando voltasse – falou a doce senhora e o olhar dele mudou de novo, ao falar com a paciente. Mas ele tinha travado o maxilar, ficou por uns segundos irritado com ela e ela percebeu. — Vou dar uma picadinha no seu dedo, tudo bem? Não vai doer nada – e lá estava a voz carinhosa e calorosa novamente. Ele então picou o dedo da senhora e mediu no aparelho. – Como imaginei. A senhora é diabética? — Sou, mas bebi café antes de sair. — Com açúcar? – Ele perguntou com um tom de brincadeira, como se estivesse brincando com ela. — Não consigo usar adoçante. Deixa um gosto muito ruim na boca, parece remédio. — Sua danadinha. Não pode, senhora Mirtes, e sabe bem disso, não é? E só café não é o suficiente para senhora. Tem que comer alguma coisa e o café da manhã é o principal, já que ficou horas sem comer nada. Vamos fazer o seguinte: Vamos até o hospital só para estabilizar sua glicose e depois vou te dar umas dicas de adoçantes que vai mudar sua vida, o que me diz? Lara pensava em marcar uma consulta urgente com seu ginecologista. Ela estava estranha ouvindo o Socorrista falar carinhosamente com a senhora. Quem sabe um terapeuta? Ele a chamou de danadinha?! — Tá bem, filho, mas tenho que voltar logo para casa. — Você vai acompanhá-la até o hospital? – Ele perguntou à Lara, mas a voz estava dura novamente. Ele a odiava? — Bem, preciso ir trabalhar, nem estou com  minha bolsa e… — Não precisa, minha filha, vou sozinha. Não era coisa da cabeça dela, ele realmente a olhava com reprovação. — Pode trabalhar mais tarde, ou tirar o dia de folga – foi o que ele falou, e ao que parecia, tentava se controlar para não dizer umas verdades à ela. — Bem. Tudo bem, vou com a senhora. A senhora Mirtes rejeitou a maca, dizendo que estava se sentindo bem para andar. O Socorrista a segurou pela cintura para que ela subisse atrás na ambulância e Lara quase revirou os olhos de prazer. Ele não a ajudou a subir os degraus no carro, mas ela o ignorou, sentando-se ao lado da senhora. Para sua descrença, ele entrou atrás com as duas e o lugar ficou bem apertado. Lara mal respirava, encolhida entre ele e a senhora Mirtes, uniu as duas pernas e torceu para chegarem logo ao hospital para ela pegar um táxi e voltar para seu trabalho. A voz dele era mais grossa dentro da ambulância fechada. Ele avisou ao companheiro que podiam ir e o carro se pôs em movimento. Não tinha para onde Lara olhar, as janelas eram escuras e fechadas, não lhe permitia olhar para fora. — Vou anotar para a senhora os nomes de alguns adoçantes que a senhora nem vai sentir a diferença quando for adoçar algo – ele falou e apoiou um papel nos joelhos para escrever. – Pode ser que sinta uma pequena diferença no início, mas depois vai se acostumar, eu garanto. — Como sabe disso, meu filho, também é diabético? – Perguntou  a senhora Mirtes. — Não, mas minha mãe e minha avó sempre foram e sei de alguns truques. Ao contrário de muitas pessoas, que ignoram os parentes idosos, eu pesquiso e estou sempre junto da pessoa. Isso é amor. Sim. Ele estava jogando ponto para ela e Lara entendia agora o motivo. Ele achava que ela era filha da senhora. Fora ela quem pediu  o socorro e estava ao lado da senhora o tempo todo. Babaca. Pois ela era quem não ia tirar essa impressão dele. Não era obrigada a isso. Que pensasse o que quisesse e julgasse como preferisse. Lara era terrível às vezes e resolveu espezinhar mais: — Não vou poder ficar muito tempo no hospital acompanhando-a, tudo bem? Ouviu quando ele engoliu a seco ao seu lado. — Nem precisava você ter vindo, meu bem. A culpa foi minha, como disse o Socorrista. — Não – ele interrompeu. – Não é sua culpa, a senhora devia estar acompanhada, passou mal sozinha na rua e não tem culpa de passar mal. Lara não precisava olhar pra ele pra saber que estava trincando o maxilar. Mas agora ela ia até o fim. — Tenho muitos trabalhos para terminar e já estão todos atrasados, a senhora entende , não é? Não posso ficar muito tempo… — Ei – ele a interrompeu. – Ela não tem culpa se você tem trabalho a fazer. A senhora Mirtes parece ter percebido a irritação do rapaz. — A obrigação não é dela… — Não se preocupe – Lara sorria para ela e não deixou que ela continuasse, colocou uma mão sobre o braço da senhora para tranquilizá-la e se virou para ele. Sabia jogar esse jogo. – É impressão minha ou você tem algum problema comigo? Costuma tratar todos os que acompanham os pacientes com grosseria? — Só os que são relapsos com os idosos – ele respondeu, sustentando o olhar dela. Lara podia ver agora mais de perto os olhos negros dele. Eram tão pretos que mal se via as pupilas. Os cílios eram grandes, o queixo dele era quadrado e tinha uma covinha, que se ele não fosse tão chato, ela poderia se imaginar passando a língua ali, mas a língua dele era ferina e ela despertara a fera.. Só os que só pensam em trabalho e abandonam os pais doentes. – Lara viu que as narinas dele se contraíram em um leve abrir e fechar. A senhora Mirtes ia interromper novamente, mas Lara apertou-lhe o braço devagar, em um mudo pedido de que ela não falasse.
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