De frente com o passado

1423 Palavras
~ Victor Fui invadido por um turbilhão de memórias que jurei ter enterrado, assim que coloquei os pés em Girassóis. Titubeei ao tomar aquela decisão, mas não tinha escolha. Para chegar onde queria, precisava enfrentar os fantasmas do passado. Olhei a rua calma através da grande varanda, apreciando o ar fresco daquela tarde. Nada havia mudado. A calmaria que cercava os casarões antigos da região. O cheiro de pão fresco que vinha da padaria da frente. Poucas pessoas circulando sem nenhuma pressa para cumprir com os seus afazeres. Girassóis era a mesma cidade provinciana e pacata de sempre. Estava completamente submerso com aquela volta no tempo, quando fui surpreendido com a chegada de Cecília— minha noiva — que me abraçou por trás. — Esperando encontrar alguém?— Ela perguntou. Não consegui captar ironia ou qualquer tipo de segundas intenções em sua voz. Puxei o ar e o soltei devagar, antes de respondê-la — Estou me familiarizando novamente com a cidade. — Familiarizando?— Ela enrugou a testa.— Você morou aqui a sua vida inteira. Precisei de um longo minuto para refletir e responder: — Eu não consigo explicar essa sensação de reencontro comigo mesmo. Parece que uma parte minha ficou aqui perdida nos últimos sete anos. — Você está sendo piegas, meu amor. Isso não combina com você — Cecília se afastou, voltando para o quarto. Eu fui atrás, com a expressão ainda melancólica. — Preciso admitir que fico preocupada. Quando nos conhecemos você ainda estava muito mexido com o término… — Não vamos tocar nesse assunto— A interrompi abruptamente.— Carolina é um tema que ficou para trás e não deve nem ser mencionado. — Por que?— Ela cruzou os braços e projetou o queixo para frente.— Falar nela te dá algum tipo de nostalgia? O tom amargo da mulher deixou muito claro os seus sentimentos. — Não estou entendendo essa sua reação. Nesses cinco anos de relacionamento nunca teve uma atitude ciumenta. Ela se sentou sobre a cama e cobriu o rosto. Sua respiração era lenta e pesada, como se o ar estivesse rarefeito. Sentei-me ao lado dela e toquei o seu ombro. — Ceci… — Eu nunca me senti insegura como agora — Ela soluçou ao falar. Sua voz estava embargada e seus olhos marejados. — Por que tínhamos que voltar? — Eu te prometi que em um ano vamos embora, não prometi? — Em um ano muita coisa pode acontecer, Victor. Levei uma das mãos ao rosto dela e acariciei a bochecha direita com o polegar. — Você sabe o quanto eu quero ser sócio daquela editora… — Eu sei. Mas não tinha outra matéria? Tinha que ser justo a que precisava vim para Girassóis? — Nenhuma outra matéria era tão desafiadora, meu amor. Passar uma temporada em Londres, Paris ou Veneza não seria nenhuma novidade. A mulher aquiesceu, concordando comigo. — Todos os seus colegas adoraram a oportunidade de uma viagem para fora do país. — Eu também adoro quando acontece, mas precisei sacrificar essa vontade para conquistar um objetivo maior. — Só tenho medo que pelo caminho sacrifique mais coisas — Admitiu Cecília, me olhando nos olhos. — Chega disso, Ceci. Você é a mulher que eu escolhi para passar a vida ao meu lado. Já estamos juntos há tanto tempo… vamos nos casar no final do ano… — Tem certeza que colocou um ponto final na sua história com a Carolina? — Pelo amor de Deus…— Bufei.— Tínhamos dezoito anos quando nosso relacionamento terminou. Como pode me perguntar isso? — Vocês tinham dezoito anos quando ela terminou com você por videochamada — Minha noiva acrescentou. O seu tom de voz indicava que aquela informação mudava tudo. — Sim, exatamente. Eu sofri bastante, mas o tempo passa para todo mundo. — Será que passa mesmo?— Ela murmurou.— Carolina foi o seu primeiro amor. A menina que você amou quando criança até o início da sua vida adulta. — Ela foi a menina que eu amei, mas você é a mulher que eu amo — Aproximei o meu rosto para beijar os seus lábios. Ela retribuiu após um meio sorriso. — Me perdoa por esse melodrama — Ela segurou o meu rosto. — Tudo bem — Pousei um beijo na testa dela, antes de ficar de pé.— Vou até o escritório, tá? Preciso começar a planejar o meu dia de amanhã. — E eu, dentro de alguns minutos, vou ficar presa em uma reunião de 3 horas. — Somos um casal muito moderno — Brinquei, antes de deixar o quarto. Até tentei me concentrar no trabalho, mas depois de algum tempo foi impossível. Natan, meu melhor amigo de infância, não parava de me mandar mensagens. Meu celular apitava a cada cinco minutos com uma notificação diferente — e eu estava tão intrigado que não tive coragem de silenciar. A primeira mensagem foi um “ você não vai acreditar quem está bebendo sozinha no Merci’s” acompanhada de uma foto da Carolina. A segunda foi para mostrar a sua companhia — um homem desconhecido. Natan narrava cada dose de uísque ingerida por Carolina, enfatizando a malícia do tal homem em oferecer cada vez mais. Desde o início eu deveria ter dito que não era problema meu. Mas como seria insensível a uma pessoa que tanto amei? Por mais que não pensasse nela há muito tempo — e nem queria ter motivos para isso — não podia desejar o seu m.al. Deixei o meu notebook de lado e fiquei de pé. Sem deixar que o ressentimento falasse mais alto, fui verificar o que estava acontecendo. Durante todo o caminho me perguntei o porquê de estar fazendo isso. Me convenci de que se tratava de um ato de humanidade, e não de uma atitude heróica. Também insultei todas as pessoas que estavam lá presenciando tudo e que estavam sendo negligentes. Assim que cheguei no bar tentei encontrar algum rosto conhecido, mas não identifiquei ninguém. Continuei varrendo o ambiente com os olhos, até finalmente achar Carolina. Cheguei bem a tempo de ver uma das mãos do sujeito agarrar a coxa dela. Mesmo com o avanço da embriaguez, a mulher protestava rejeitando os avanços, mas era inútil. Me aproximei aos poucos, analisando melhor o que acontecia. O olhar dela revelava pânico e vulnerabilidade. Para dar o seu xeque-mate, o homem apelou com o pior argumento possível: — Ah, eu te escutei e paguei várias doses de uísque para você. Vai ter que me compensar de alguma forma. Presenciar aquela cena fez a bile arder na garganta. Já não se tratava apenas da minha ex em apuros. Era uma mulher vítima de uma tentativa de abuso. Me aproximei de repente e puxei o cara pelo colarinho antes de disferir o meu melhor soco. Com certeza os meus dedos ficariam roxos na manhã seguinte, mas com certeza não tão roxos quanto o olho esquerdo dele. O indivíduo estava atirado no chão, sem conseguir se mover. Carolina murmurou o meu nome no instante em que me viu e aquela foi a única frase coerente que saiu da sua boca. Tentou ficar de pé, mas suas pernas cederam, então precisei carregá-la no colo. Um pequeno grupo se aglomerou ao redor da confusão, então me apressei em levá-la para o meu carro e dirigi para longe. Levá-la para casa naquele estado não era uma opção, então escolhi o endereço de emergência do qual me lembrava: a casa de sua amiga Olívia. — Oh meu Deus!— Sibilou a mulher assim que abriu a porta. Carolina estava em meus braços, completamente desacordada. — O que aconteceu?— Ela perguntou em seguida. — Agradeço se me deixar entrar, ela está bem pesada— Rosnei. — Claro, claro. Me perdoa— Ingrid abriu espaço com o corpo.— Coloque-a no sofá. Fiz o que ela orientou. — Por que ela está desse jeito? Nunca vi a Carol tão bêbada. — Isso terá que perguntar a ela quando tiver condições de responder. A minha parte eu já fiz — Respondi, antes de deixar o local. Abandonei a casa sem nem olhar para trás. Olívia estava prestes a dizer algo, mas não me interessava ouvir. Rezei para que Cecília não notasse minha ausência. Após a discussão que tivemos mais cedo, aquela situação só pioraria. Girei a maçaneta devagar para que não fizesse barulho e até fechei a porta com cuidado para que não fizesse ruídos. No entanto, todo aquele procedimento foi inútil. — Onde estava?— Perguntou Cecília, com cara de poucos amigos.
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