Todos os dias no mesmo horário, ela me visita. Ela não se importa se após horas de estudo e constantes questionamentos, eu finalmente fui capaz de dormir. Ela coloca sua roupa fina e caminha em minha direção, gritando com sua voz estridente e dizendo em alto e bom som, eu não irei lhe permitir descansar. Então, eu me levanto e caminho até a cozinha, bebo um copo com água e sigo ao quintal, lixando madeiras e pregando pregos em um trabalho que nem mesmo serei capaz de vê-lo terminado se toda essa dor e visitas constantes não pararem.
Mas...algo estranho aconteceu, a visita da ansiedade e sua amiga insônia fora aplacada, pelo extremo desconforto e irritação que senti a algumas horas. Aquela garota tão cheia de suas próprias opiniões e razões, gritava em alto e bom som, com o dedo fino e cumprido apontado em meu rosto. Ela dizia a quem quisesse ouvir o quanto eu era um "embuste", como definiu com suas próprias palavras.
— O que disse? — Perguntei, sem entende-la. Saanvi estava acompanhada de um garoto, ele escutava algo em fones grandes e se balançava de um lado para o outro, parecia ter dezesseis anos e cor avermelhada, com cabelos escuros e lisos.
— Isso mesmo que ouviu. Como pode ser tão embuste? Sua namorada passando frio e você usando "blusinha térmica"! — Enfatiza seu desdém com aspas nas mãos.
— Do que ela está falando? — Tento me concentrar em suas palavras, mas tudo parece me deixar em um completo vazio.
— Por que é tão intrometida? Nos deixe em paz, garota! — Isadora se põe em minha frente e me puxa pela mão.
— Vá, aceite tão pouco assim!! — Saanvi resmunga, dando pulos para enfatizar sua voz que já era extremamente alta.
— Isadora, do que ela estava falando? Eu deveria ter lhe dado minha blusa de frio? Espere, por que não trouxe blusa?
— Eu-eu não sabia que faria frio. — Responde, abaixando a cabeça, enquanto caminhamos. Como ela pode ser tão despreparada? Estava informando em redes de TV, internet e todos os meios de comunicação, que haveria geada na cidade naquela noite.
— Como pode ser tão tola? Sabe que as noites de São Paulo são sempre muito frias.
— Informo calmamente, ao parar em frente a sua casa.
— É talvez esteja certo, sou mesmo uma boba!!
— Grita, passando pelo portão e o batendo fortemente.
— Espere, você está irritada?! — Pergunto.
— Olhe em seu caderno de emoções!!!
— Esbraveja ainda mais alto, fazendo as luzes de sua casa se acenderem.
Me peguei atormentado durante toda noite, nunca quis que Isadora se entristecesse comigo e sei que era este sentimento que a predominava, pois o livro de emoções, informava exatamente as linhas de suas expressões. No outro dia, apenas queria chegar o mais rápido possível na faculdade e tentar conversar com ela, apesar de não saber o que diria.
— E ai embuste! — Saanvi acena e por pouco não sou derrubado de minha bicicleta. Hoje, ela usava os cabelos trançados e um vestido vermelho com dourado.
— Peço que não fale comigo. — Digo, ajeitando minha mochila e caminhando em direção ao refeitório.
— Ei espera ai, foi mau por ontem! — Puxa a alça de minha bolsa e sou levado para trás em um súbito. — Desculpe, é que não gosta de ser tocado.
— O que quer comigo? Deve achar divertido enlouquecer e estragar a vida de alguém.
— Falo friamente e a mesma semicerra os lábios. Sua boca é vermelha e um tanto volumosa. Espera, por que estou olhando para a boca dela??
— Eu já pedi desculpas, apesar de que realmente estava errado. — Responde, caminhando e a sigo.
— Em que errei? Isadora simplesmente ficou irritada comigo. Eu deveria ter lhe lembrado de levar uma blusa quente? — Pergunto e a garota para, me fazendo tropeçar nos próprios pés.
— Será que é tonto? Ela foi sem blusa para que pudesse emprestar a sua. — Diz, como se aquilo fosse algo corriqueiro de se acontecer.
— Por que eu faria isso? Se lhe desse meu moletom, ficaria com frio.
— Sim, eu sei. Mas, as garotas gostam de se sentir cuidadas. Ela esperava que lhe desse a blusa, como um sinal de preocupação.
— Volta a caminhar, enquanto fala como um guru dos relacionamentos interpessoais.
— Eu deveria pedir desculpas a ela? Como acha que devo falar? Alguma ideia? — Questiono e a mesma agora está na frente de seu armário. Ela põe o dedo no queixo fino e fecha levemente os olhos, que são... são pretos? — Se não quiser dizer, tudo bem. Consigo resolver sozinho.
— Não, tudo bem. Sabe, estou precisando de um favor. Podemos negociar?
— Não acredito, está querendo dinheiro? Você anda em um conversível para todo lado. Como os ricos podem ser tão mesquinhos e ambiciosos? — Lhe interrogo e a garota ri, roncando como um porco. Ela é tão esquisita.
— Não é isso. Você pode me dar três desejos de presente, o que acha? Se aceitar, eu lhe ajudo com a garota.
— Não me parece justo. Nem mesmo sei o que irá pedir. Você parece louca, para mim.
— Digo e a mesma fecha o armário, após juntar alguns livros.
— Então continue sem saber como tratar as pessoas. — Informa, caminhando para sua sala. Lhe puxo pelo braço, a soltando rapidamente por mais uma vez, sentir meu corpo queimar.
— Se está com medo, posso fazer o primeiro pedido agora.
— Tudo bem, faça. Irei ver, se consigo cumpri-lo ou finalizaremos este acordo antes de inicia-lo.
— Digo, a observando. Saanvi olha para o livro em sua mão e me entrega.
— Me ajude com essas matérias. Preciso delas para seguir ao próximo semestre de arte.
— Acabo rindo. Como ela podia ser tão desonesta?
— Está querendo que eu faça para você? Nem pensar. Se quer passar, terá de ser por seu próprio esforço. — Decido por um fim naquela ideia estúpida e sigo pelo corredor. Garota falsa. Eu mesmo consigo resolver minha questão com Isadora, afinal, não foi tão grave assim.
— Ele simplesmente me deixou passando frio, enquanto usava um moletom térmico. Mas, isso não foi o pior. Acredita, que o Davi me deu um presente e depois pediu de volta? Como ele pode ser tão insensível, Yasmin? — Isadora chora e minha prima a abraça, batendo-lhe levemente nas costas.
— Calma amiga, é por causa do autismo.
— Ela diz e de repente me sinto como Gael havia dito, encontrando imperfeições dentro de mim mesmo. Corro em direção a sala de Saanvi, ela passa as mãos sobre os cabelos ferozmente, enquanto chora sobre os livros em cima da mesa.
— Saanvi... — A chamo e todos me olham. Talvez, eu esteja tão desesperado que nem mesmo percebi a sala cheia.
— Davi? Professor só um minuto. — Responde, seguindo ao corredor e fechando a porta atrás de nós. Eu a olho com as sobrancelhas arqueadas. — Não se preocupe, sou quase dona dessa sala. Diga, vai me ajudar?
— Sim, vou lhe ensinar. Mas, como deve saber, sou autista e não tenho muita paciência. Então, esteja pronta pra aprender bem rápido.
— Não se preocupe, serei a melhor aluna, senhor! — Coloca a mão sobre a testa e marcha como um soldado.
— Tá bom, já chega. Onde podemos estudar?
— Pergunto e ela volta a pôr a mão no queixo, tentando pensar no melhor lugar para a minha tortura diária.