Lição Dois

2612 Words
Já fazia três meses. Por mais ou menos um mês, a vida de Jack Kingsley virou um caos. Como se seu corpo se movesse sozinho como um robô, sem que sua cabeça conseguisse processar tudo que estava acontecendo, foi agindo e se ocupando das coisas práticas: arranjou o funeral, recebeu a sobrinha na sua casa imediatamente cuidando dos papeis para adquirir sua guarda legal, tratou de que ela começasse o quanto antes um acompanhamento psicológico como lhe fora recomendado, colocou a empresa em segundo plano para lidar com os destroços daquela tragédia até que não estivesse mais soterrado, até que tudo estivesse mais ou menos limpo e que ele pudesse ver a luz do sol e respirar. Bem, o cenário podia estar mais limpo, mas a verdade é que ainda estava tudo destroçado. A reconstrução levaria tempo. Às vezes, secretamente, ele se perguntava se algum dia tudo realmente voltaria ao seu lugar certo. Jack não era do tipo emocional, mas a verdade que ele tentava esconder principalmente de si mesmo todos os dias é que nunca tinha sentido tanta dor. Seu irmão mais velho era a pessoa mais importante na sua vida. Apesar de sua arrogância e excesso de autoconfiança, Jack sempre admirara Kyle e os dois eram os melhores amigos. Faziam tudo juntos, desde crianças. Onde quer que fossem se destacavam, eram as almas da festa. Kyle com seu bom humor, sua vivacidade, sua inteligência; ele tinha o dom de fazer qualquer assunto parecer interessante e qualquer mentira parecer convincente, levava todo mundo na lábia e conseguia, assim, tudo que queria. E era tão divertido que ninguém conseguia ficar com raiva dele, fosse o que ele aprontasse. Assim que o pai dos dois tinha morrido, não muito tempo atrás, Kyle assumira a enorme empresa de publicidade que ele havia fundado e feito crescer internacionalmente. E o fez com excelência. Como era de se esperar, Jack logo se juntou a ele e os dois, além de muito bem-sucedidos, se divertiam juntos no trabalho. Eles jorravam ideias sem parar quando se juntavam e jamais brigavam, mesmo que discordassem firmemente um do outro. Formavam a equipe perfeita. Foram padrinhos de casamento um do outro. Encobriram as travessuras um do outro lealmente tanto quando crianças quanto como adolescentes. Kyle era o único que sabia do segredo de Jack. Até que aconteceu o acidente com o caminhão na pista. E então não havia mais Kyle. Ele se fora junto com a amada e também inteligente e criativa esposa Alison, que escrevia romances históricos bastante aclamados dos quais o marido era fã número um. Eles morreram instantaneamente, foi o que disseram. Pelo menos não sentiram dor. Pelo menos não estavam com Susie naquela noite. Jack repetia tudo isso para si mesmo. Pelo menos... Kyle morrera com apenas trinta e oito anos. Alison, com trinta e cinco. Tinham tantos planos. Tinham uma filhinha de quatro anos. Alison estava no meio de mais um livro. Kyle prometera a Jack que tirariam um fim de semana apenas para relaxar, os dois juntos, assistindo jogo de rúgbi na TV e bebendo cerveja, como não faziam havia muito. Kyle era a única família que restava a Jack. Mas pelo menos... Pelo menos... Pelo menos tinham vivido, até então, uma vida maravilhosa. Não podiam reclamar nem se arrepender de nada. A vida é assim mesmo, não é? Acaba de uma hora para a outra. A única certeza de que temos na vida é a morte. A vida segue... Pelo menos você ainda está vivo e tem tanta coisa pela frente... — Você devia fazer terapia também — Mia havia sugerido a Jack quando ele viera com o assunto sobre um psicólogo para a sobrinha. Mas Jack ficou com raiva da esposa. Ele não queria terapia. Ele estava bem. Não estava na mesma situação que a sobrinha que era uma criança vulnerável. Era um homem feito e sabia lidar com a morte. Tinha perdido a mãe quando ainda criança. Tinha perdido o pai. Ele não precisava de terapia. No entanto, nenhum “pelo menos”, nenhuma consolação profunda ou barata, nenhum pensamento racional conseguia fazer aquela dor parar. E o único remédio que Jack encontrou para aquela dor foi ignorá-la. Era tudo que podia fazer. Não sofrer era tudo que ele podia fazer para não sofrer. Para ele, era isso que fazia sentido. Mia ficou aqueles três meses em casa cuidando de Susie. Mas agora seu joelho já tinha melhorado e ela precisava voltar aos treinos. E Jack não podia largar a empresa; agora seu trabalho estava sendo dobrado sem o irmão. Por isso, eles precisavam urgente de alguém que cuidasse daquela criança ferida como se fosse sua própria filha. E eis que surgira Ray Allen com suas orelhinhas de ursinho e suas palavras ridiculamente puras e quase infantis. Jack realmente havia sentido algo naquele garoto. Algo dentro dele dissera, assim que pusera os olhos nele, que não podia perdê-lo de vista. Não conseguia tirar da cabeça a imagem dele sentado naquela cadeirinha azul-bebê, aquele garoto pequeno e magricela de olhos amendoados — ele tinha ascendência oriental, coreana, talvez? —, a expressão séria e diligente por trás dos óculos antiquados de aros redondos que ficariam ridículos na maioria das pessoas, mas que, de algum modo, pareciam combinar com ele, os cabelos negros mais lisos que já tinha visto, aquele rosto cuja pele parecia limpa e macia como a de um bebê, as mãos magras de dedos compridos e delicados gesticulando graciosamente, os lábios cheios muito rosados que ficavam se apertando e se juntando enquanto ele falava... Havia algo nele que era muito interessante. Ficara lá, observando-o e pensando em como dava para perceber que, apesar de sua aparência e evidente gentileza e doçura, ele possuía um espírito firme e muito audacioso que podia beirar a insolência se provocado e Jack não sabia se isso o fazia gostar mais dele ou se o irritava um pouco. Estava pensando nisso, tentando se decidir, quando Mia interrompeu seus pensamentos: — Você não precisa ir, querido. — Eu quero ir. Mia ficou observando enquanto o marido dava o nó na gravata com aquela expressão resoluta. — Bem, se vai passar o dia em um jardim de infância, não devia se vestir de um jeito menos... Formal? — ela riu. Ele apenas olhou para ela, irritado. Ela sentou-se na cama, fitando-o pelo enorme espelho. Ele tinha se atrapalhado com a gravata e agora estava tendo que refazer o nó. — Sabe, eu estou surpresa. Você parece ter gostado mesmo desse garoto. Escolhê-lo assim, sem mais nem menos, com tantas opções de professores mais experientes e melhores recomendados por aí... Foram as orelhinhas de ursinho, não foram? Jack estremeceu, sentindo o coração disparar como se tivesse tomado um susto. Ou como se tivesse sido pego no flagra fazendo algo errado. Odiou ter ficado tão desconcertado sem entender direito o motivo. Ele forçou uma risada para a piada dela, mas de modo a deixar claro que não tinha achado nenhuma graça. — Eu também gostei dele — disse ela. — Ele parece ser um doce, não é? Jack ficou se lembrando de Ray na porta da sala, se despedindo dos alunos e entregando-os aos pais. Ficou se lembrando do modo como as crianças o abraçavam em adoração e de como ele pegava cada uma pela mão, de como afagava seus cabelos e as beijava com um carinho tão natural, o sorriso terno e amável que não saía do seu rosto, irradiando para elas. Ficou se lembrando de como ele vestia os casacos em algumas delas com cuidado, de como conversava com os pais com uma expressão concentrada, de como se abaixou em um momento para amarrar os cadarços de um menininho. Lembrou-se de quando os olhos de Ray se encontraram com os dele sem querer. Lembrou-se do seu sorriso e de como ele tinha sentido uma coisa tão esquisita por causa daquilo, algo que até agora o incomodava e ele não sabia apontar o que era. Não acreditava que estava errando o nó da gravata pela segunda vez! Ele fazia aquilo todo santo dia! — Você tem razão, deixa essa coisa pra lá. — De repente Jack atirou a gravata longe como se estivesse com raiva dela. — É só a droga de um jardim de infância.   ****   Eles chegaram propositalmente cedo. Ray ainda estava se ajeitando na sala, acomodando suas coisas na mesa. Mia bateu na porta aberta, chamando a atenção dele. — Bom dia, professor! Ray virou-se e olhou para os três, surpreso. Mas logo abriu um sorriso. — Bom dia! — ele se aproximou e foi direto até a pequena Susan, abaixando-se para ficar na altura dela. — Olá, Susie! Ouvi falar muito de você. Como vai? — Olá — ela sorriu um pouco timidamente para ele. — Sou o Ray. Vamos passar o dia juntos hoje, o que você acha? — E o que nós vamos fazer? — Vamos brincar muito. Espero que seja bem divertido para você. — Você não é um pouco grande para brincar comigo? — perguntou ela. — Você acha? Eu não acho. Na verdade, acho que sou bem baixinho — Ray fez um gesto comparando sua altura com a de Jack. Susan riu. Mia, também. — É, acho que tem razão — disse a pequena. — Além disso, haverá outras crianças da sua idade para brincar. Você já esteve numa escola antes, não é? — Por pouco mais de um mês — respondeu Mia. — Mas decidimos que era melhor que ela recomeçasse do zero em outra escola, em outro ambiente. — Entendi — Ray voltou a atenção à Susan. — Então... Você gostou da sala? Susan olhou ao redor. — Eu adorei! — Pode ir explorar. Ela vai ser sua também, afinal. Susan ficou empolgada. Olhou radiante para os tios e antes que eles pudessem reprimi-la, saiu correndo saltitando pela sala, pronta para começar a exploração. — Tudo bem deixá-la solta, assim? Ela é bem curiosa, pode acabar mexendo no que não deve — disse Jack, preocupado. — Ela pode e deve mexer no que ela quiser. Essa sala é dela e dos outros alunos. — Então, professor... Nós decidimos que vamos ficar os dois para assistir à aula, tudo bem para você? — disse Mia. — Tudo bem. Espero que fiquem à vontade e se divirtam também. Mia riu. — Não vou mentir, acho que estou tão empolgada e curiosa quanto a Susie. Ray olhou para Susie que pulava tentando pegar um penduricalho de estrela. — Ela é uma gracinha. — Bem, você deve saber de antemão que ela estava tendo problemas na outra escola. Mesmo antes da tragédia. Parece que ela estava atrasada, não acompanhava bem os outros alunos. E agora... É provável que esse problema tenha se agravado. Ray voltou a olhar para Susan. Agora ela estava mexendo nos livros infantis do cantinho da leitura. Abriu um deles e ficou olhando as figuras com uma expressão alegre e interessada, como se conseguisse ler o que estava escrito ou pelo menos entender a história. Ela soltou uma risada e Ray sorriu. Talvez ela estivesse criando a história na própria mente. Ele se lembrava de que fazia muito isso antes de aprender a ler. — Ela me parece bastante vivaz e esperta. — Você acha? O jeito que Mia falou deixou Ray vermelho de raiva; especialmente porque Susie estava presente. E se ela tivesse ouvido? Mia achava que a menina não ia perceber o que ela estava querendo dizer? Que isso não a afetaria? Mas não era só isso. Ray detestava que falassem desse jeito de qualquer criança. Cada uma tinha um tipo de habilidade e maneira própria de aprender e perceber o mundo e ele não gostava que taxassem a menina daquele jeito como se ela fosse menos capaz. Aquela palavra “atrasada” soou tão ofensiva que ele sentiu um pequeno incômodo físico, uma vontade de rebater. Mas respirou fundo e tentou não guardar rancor. Talvez Mia só estivesse preocupada. — Sejam quais forem os problemas, vamos resolvê-los — ele disse, por fim. — Agora vou acomodá-los para a aula. Separei duas cadeiras para vocês já contando que viessem, mas podem se sentar onde preferirem. Ray mostrou as cadeiras para os dois e eles foram se sentar nelas, como ele esperava. Assim que o casal se acomodou, as crianças começaram a chegar com seus pais na porta e então o professor pediu licença para ir até eles. Jack ficou observando aquele ritual. As crianças com os pais que entregavam a Ray as mochilas e conversavam com ele brevemente. A maioria das crianças chegava feliz como se estivesse indo pra um playground, abraçando Ray, falando com ele sem parar, exibindo seus brinquedos ou qualquer coisa do tipo, e ele ficava lá, sorrindo e conversando com elas com toda atenção, retribuindo o amor e a alegria delas como se eles fossem amigos e aquelas conversas não fossem chatas e tolas. Um garotinho, no entanto, chegou chorando. Parecia não querer ficar. Ray foi até a mãe que o segurava no colo e começou a falar com ele, pacientemente, mas ao mesmo tempo com um tom animado. O garoto parou de chorar, mas ainda parecia relutante. Ray então buscou a ajuda dos outros alunos, pedindo que eles contagiassem o menino chorão com sua animação e acolhimento. As crianças começaram a listar o que fariam de divertido no dia, tentando convencê-lo. — E só vai ser totalmente divertido se todos estiverem juntos, não é? — disse Ray. As crianças concordaram e começaram a chamar o nome do menino em um coro que fez Ray rir. O menino acabou sendo convencido e desceu do colo da mãe, gerando aplausos. — Olha só aquilo — disse Mia. — A Susie já está no meio deles! Jack não tinha percebido. Quando notou, seus olhos se arregalaram. Quando ela tinha entrado no meio daquelas crianças que nem conhecia, se misturando a elas? Ele sorriu. A natureza de Susie sempre tinha sido alegre — às vezes até demais —, mas ele não esperava vê-la assim outra vez tão cedo. Claro que ela era pequena demais para entender completamente o que havia acontecido com os pais, mas isso não a impedira de, nos últimos três meses, chorar mais do que era de seu costume e ter perdido pelo menos um pouco notável de sua energia. Jack sabia que a terapia vinha fazendo progressos e tinha certeza de que integrá-la novamente em um ambiente com outras crianças faria um bem enorme a ela, mas ele tinha que dar créditos, naquele momento, àquele ambiente em particular. A aula nem tinha começado ainda, mas Jack já conseguia perceber que a energia que Ray cultivava ali dentro com aquelas crianças era especial. Havia um espírito de união, carinho, liberdade e respeito dentro daquelas paredes que parecia quase impossível. Jack não imaginava que isso podia existir em um grupo de crianças. Parecia que Ray estava ensinando as coisas certas para elas. Parecia que ele, aquele garoto franzino e ingênuo, ia cuidar de Susie melhor do que ele próprio, que a havia amado desde o nascimento, havia cuidado até então. Jack estava olhando tão fixamente para Ray que ele pareceu perceber e acabou olhando de volta instintivamente. Outra vez aquilo. Ray sorriu para ele e o coração de Jack disparou, espalhando aquele sentimento estranho sem nome por todo seu corpo. Ele acabou sorrindo de volta, antes que pudesse se conter. Pelo visto ele havia mesmo acertado na escolha para sua amada Susie, mas o que sentia quando olhava para Ray não tinha a ver com a sobrinha, ele sabia disso. O que será que seus instintos realmente queriam dizer-lhe sobre aquele garoto?
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