Lição Três

3966 Words
— Pessoal, quero apresentar a vocês uma nova colega: essa é a Susie Kingsley. — Olá — Susie sorriu e encolheu os ombros, encarando as outras crianças. Todas fizeram um coro um tanto quanto desordenado para cumprimentá-la. — Então, é o seguinte: como a Susie é nova, ela vai precisar que vocês sejam especialmente gentis com ela, certo? Posso contar com vocês para isso? — Sim! — gritaram as crianças mais uma vez em coro. — E o que podemos fazer para ser gentis com ela? Fazer com que ela se sinta à vontade e se divirta. Ajudá-la com as tarefas e com as regrinhas que ela não conhece ainda... Mais o que? — Dividir — disse uma das crianças. — Isso mesmo! Dividir é importante. O que mais? — Dizer que o cabelo dela é muito bonito — disse uma menininha. Ray sorriu e acariciou o cabelo longo, castanho e cacheado de Susie. — Sim. E é verdade. Seu cabelo é lindo, Susie. Susie sorriu, contente. — Obrigada. — Mais o que, crianças? — Deixar que ela sente perto do professor sem brigar. Ray riu. — Isso é muito gentil, sim. — Professor Ray — um garotinho levantou a mão. E depois abaixou a voz como se fosse contar um segredo: — Quem são aquelas pessoas? Ray olhou para Jack e Mia, que estavam sentados um tanto afastados dele e das crianças que formavam um círculo, sentados no chão. — Ah, que cabeça a minha! Esqueci-me de apresentá-los a vocês, desculpe. Crianças, esses são Jack e Mia Kingsley. São os tios da Susie e vieram hoje para conhecer nossa sala e apoiá-la no primeiro dia. Digam olá para eles. Mais uma confusão de vozes em coro. Ray sorriu satisfeito. — Certo, agora vamos começar.   ****   — A gente precisa mesmo ficar? Quero dizer, isso tudo é uma gracinha, mas acho que não somos mais necessários aqui — disse Mia em um sussurro para Jack. Jack nem olhou para ela. — Eu quero ficar até o fim. — Você vai ficar entediado. — Não importa. É meu dever. Mas tudo bem se você quiser ir embora. Mia ponderou. Os dois estavam ali não havia muito tempo, era verdade. Ray tinha feito algumas perguntas para as crianças na rodinha, pedido para que um por um se apresentasse à Susie e até mesmo pediu que Susie falasse qualquer coisa que quisesse para seus novos colegas. Ela começou a contar uma história que ficava muito confusa conforme ela ia falando, como se ela ficasse distraída e perdida no próprio discurso. Era típico dela e deixava Mia nervosa e angustiada. Mas Ray não a interrompeu, deixou que ela continuasse aquela coisa sem sentido até o final. Depois Ray começou a falar sobre os dias da semana, sobre o tempo lá fora e aí vieram as musiquinhas. Naquele momento eles ainda estavam cantando alguma música boba sobre os dias da semana. Susie tentava acompanhar as músicas, mas parecia estar se divertindo. Por mais que aquilo fosse bonitinho e ela tinha que admitir que o jeito como Ray trabalhava era uma das coisas mais fofas que já tivesse visto, ela sabia que não ia aguentar um dia inteiro daquilo. Muito menos Jack. Ele não tinha lá muito jeito com crianças apesar de amar a sobrinha e adorar pegá-la no colo e andar com ela pela casa sentada nos seus ombros. Mais importante, no entanto, era que Susie parecia nem se lembrar da presença deles ali. Ela estava perfeitamente bem e enturmada. Ray tinha as mãos perfeitas para que eles a entregassem a ele. Os instintos de Jack estavam certos, como sempre. Não havia motivos para eles continuarem ali. Os dois tinham mil coisas importantes para fazer; Jack estava perdendo um precioso dia na empresa e ele não era de fazer esse tipo de extravagância quando era sobre seu trabalho. No entanto, ele parecia obstinado a ficar. Mas Mia ainda apostava que ele não ia aguentar mais uma hora ali. — Bem, se você não se importa, eu vou, mesmo — ela se levantou. — Certo. Chame um táxi. — Nos vemos mais tarde, querido — ela inclinou-se e deu um selinho nele. — Mia! — repreendeu-a, mas ela riu travessa, achando graça. Andou até a porta o mais discretamente que conseguiu e saiu com um sorriso e um aceno para Ray, não querendo interromper a aula. Assim que a esposa desapareceu, Jack deixou sair um suspiro e sentiu-se relaxar. Por algum motivo, sentiu-se aliviado. Mas não demorou muito para que essa sensação sumisse; o fato de ele percebê-la foi o bastante para deixá-lo tenso de novo. Por que estava se sentindo assim? Era ridículo e sem sentido. Ele ficou olhando enquanto Ray se levantava e as crianças o acompanhavam. Eles começaram outra música que dessa vez vinha acompanhada de gestos mais dramáticos e uma dancinha. Ele sorriu, relaxando outra vez sem perceber. Pegou-se até mesmo rindo baixinho. Era uma cena adorável demais para resistir. Ele olhou para Susie e seu coração se aqueceu ao vê-la participando, imitando os passos daquela dança como se já os conhecesse de tão natural que ela soava. Ela não parava de sorrir, com os olhos pregados em Ray, e aquilo era um ótimo sinal. Ele olhou para Ray de novo. Ele olhava para Susie e às vezes ria. Pulava, fazia gestos com as mãos e exagerava nas expressões do rosto de propósito. Mudava de lugar, pegava as mãos das crianças e as incitava a continuar a música sem ele. Mia realmente achava que ele ia ficar entediado ali? Ela não fazia ideia do quanto ele estava se divertindo.   ****   No início, tudo parecia perfeito, mas logo Jack percebeu que o trabalho de Ray era muito mais difícil e exaustivo do que parecia à primeira vista. Ele não era nenhuma Mary Poppins com superpoderes e as crianças não eram como animaizinhos perfeitamente adestrados. Era o contrário disso. Foi como se ele piscasse os olhos e tudo tivesse se transformado de uma adorável cena de musical impecavelmente coreografada para um total caos. As crianças corriam pela sala. Brigavam pelo lugar que iam sentar. Gritavam e falavam ao mesmo tempo. Empurravam e insultavam umas as outras ainda que com seu vocabulário infantil. Agarravam na cintura de Ray e não deixavam que ele se locomovesse direito pela sala. Lambiam cola. Lambiam os próprios sapatos. Se sujavam sem controle. Sujavam a sala a ponto de quase fazerem Ray escorregar em massinha de modelar no chão mais de uma vez. Mas, mesmo assim, Ray não parecia perder a calma ou a doçura. Continuava falando gentilmente com as crianças e tentando fazer com que elas o ouvissem chamando sua atenção de jeitos criativos como subindo em uma cadeira, contando, cantando e pulando e agitando os braços acima da cabeça. Várias vezes, Jack sentiu vontade de interferir. Ele só precisava de uma palavra e do tom de voz certo para fazer aqueles pestinhas se comportarem como cães obedientes. Mas ele percebeu que o caso não era que Ray não conseguisse fazer com que elas ficassem quietas e sim que esse não era seu objetivo. Jack não entendia nada de pedagogia, então achou melhor ficar na sua. Mas aquilo era bastante irritante, ele não podia negar. Pegou-se admirando Ray; nunca imaginaria que um professor de jardim de infância tivesse que aguentar tanto estresse diariamente no seu trabalho. Ele merecia um prêmio. Merecia um salário melhor, disso ele não tinha dúvidas. Então Jack ficou ali assistindo àquela bagunça e ouvindo aquelas frases absurdas que chegavam a ser cômicas saindo da boca de Ray na voz tranquila dele: — Não, meu amor, não está na hora de comer. — Essa sala está muito suja, se vocês continuarem jogando massinha no chão o professor vai cair e rachar a cuca, já pensaram que horror? — Não é legal chamar seu colega de “bobo”. Não é legal dizer coisas ruins para as pessoas. Vamos, peça desculpas e diga algo legal pra ele. — Se você lamber seu sapato, você pode ficar doente. Além disso, não tem gosto bom. — Não, meu bem, ainda não está na hora de comer. E ainda havia as crianças que ficavam curiosas com Jack e iam até ele. — Você é um gigante? É do mal? — Olha só a minha cobra de massinha! — Meu nariz tá escorrendo, você tem um lenço? — Por favor, crianças — Ray corria vindo do outro lado da sala. — Não incomodem o tio Jack, sim? Em dado momento, as coisas ficaram mais calmas. Depois de uma brincadeira de amarelinha como lição e reforço para o aprendizado dos números — da qual, é importante destacar, o professor também participou como se fosse uma das crianças — os pestinhas enfim se sentaram e se concentraram na tarefa de ligar os pontinhos que formariam o número 10 em suas folhas de papel e de fazer 10 desenhos em volta do número. Nesse momento, Ray conseguiu ir até Jack, suspirando. — E então, senhor Kingsley... Tudo bem? — Acho que eu é que deveria te perguntar. — Não se preocupe, é só um dia típico. O senhor gostaria de ajudar? — Não precisa me chamar de senhor. — Certo. Então... Você gostaria de ajudar? — Como eu poderia fazer isso? Ray sorriu, parecendo ligeiramente zombeteiro. — Venha comigo. Jack levantou-se e seguiu-o. Quase gritou de susto quando Ray puxou uma daquelas cadeiras minúsculas para ele, ainda com aquele sorriso. Era uma cadeira bem ao lado da de Susie. — Por que não faz a tarefa junto com as crianças? — O que? — Jack ainda estava aparvalhado, olhando enquanto Ray colocava uma folha de papel igual a das crianças na mesa para ele. — Não vai me dizer que você não sabe contar até dez! Crianças, vamos ajudar o tio Jack! Jack sentiu o sangue ferver ouvindo Ray e as crianças contando até dez em coro e devagar como se realmente estivessem ensinando para ele. — Isso é ridículo e desnecessário — resmungou ele. — Quer que a gente cante a musiquinha dos números de novo? — Pelo amor de Deus, não! Ray sorria enormemente, parecendo se divertir. — Vamos, acredite em mim. Isso é importante para a Susie. Jack bufou, contrariado, mas cedeu. Sentou naquela cadeirinha, fazendo as crianças rirem e, o que é pior, Ray também. Olhou para a folha e para o pote cheio de gizes de cera na mesa. — Não é difícil, tio Jack — disse Susie para ele, como se o apoiasse. Ray pôs a mão na boca para disfarçar uma gargalhada e Jack olhou feio para ele. — Aqui, pega o giz cinza. Sei que é sua cor favorita — Susie deu o giz para ele. — Obrigado, querida — ele pegou o giz e começou a contornar os pontinhos. Enquanto isso, Ray ficava rodeando as mesas para incentivar e ajudar as crianças se elas tivessem problemas. — Não precisa ter pressa, Susie — disse para ela, se agachando para ficar na sua altura. — Tente fazer devagar e com atenção. Isso mesmo! O que você vai desenhar? — Vou desenhar 10 unicórnios! — Oh! Você gosta de unicórnios? — Adoro! — Eu também! Bate aqui! Jack ficou olhando para os dois com um esboço de sorriso no rosto. Depois olhou para a folha de Susie. Ela havia ligado bastante mal os pontinhos, estava tudo torto. Será que Ray não devia corrigi-la por isso? Ele ficou preocupado. — O que você vai desenhar, Jack? — Eu... Não sei — ele não conseguia evitar se sentir estúpido. — Desenha unicórnios também tio Jack! Você não gosta de unicórnios? — Querida, unicórnios nem mesmo existem, você sabe disso, não sabe? — Mas eles são fofos. — Não se preocupe, Susie. Eu vou ajudar o tio Jack com isso — disse Ray. — Caramba, tio Jack! — exclamou Susie olhando para a folha dele. — Seu número dez ficou lindo! Você é muito esperto! Queria ser esperta assim... — Qualquer um pode ser esperto, Susie — disse Ray. — Basta se esforçar muito. Ela fez que sim com a cabeça. — Então eu vou me esforçar muito! Ray foi até o outro lado de Jack. Pegou um giz de cera. — Posso te ajudar a desenhar seus unicórnios? Jack soltou o ar, se rendendo. — Tudo bem, professor. Por fim, os dois estavam desenhando juntos como duas crianças. E aquele momento nunca mais ia sair da cabeça de Jack, ele sentiu isso. A mão delicada de Ray roçando na sua, o modo como ele desenhava usando muitas cores, seu sorriso travesso toda vez que levantava os olhos para encontrar seu olhar consternado... E o riso de Susie ao lado, parecendo mais feliz do que nunca.   ****   Na hora do almoço, os alunos foram em uma fila puxada por Ray para o refeitório. Nem naquele momento ele conseguia ter paz, tinha que monitorar cada criança e ajudá-las com sua sujeira, suas brigas e suas caixinhas de leite. Depois do almoço, as crianças iam brincar em um playground numa área coberta. — Tem um parquinho ao ar livre, mas não o usamos no inverno — explicou Ray. Nesse momento, os dois conseguiram se sentar em um banco dentro do playground e relaxar um pouco observando as crianças. — O que está achando? — Ray perguntou. — Você faz um trabalho ótimo. É admirável. Eu já teria perdido a cabeça e gritado ou colado as malditas bundas dessas crianças nas cadeiras. Ray riu. — São crianças. Não podemos esperar que ajam como adultos. Elas têm que brincar, correr, explorar, se expressar livremente. Tudo isso faz parte do aprendizado. — Isso faz do seu trabalho quase humanamente impossível. Não consigo imaginar porque alguém escolheria isso para fazer a vida. Nem dá tanto dinheiro assim. — Dirigir uma empresa não é mais estressante? — Eu pensava isso até hoje. Mudei de ideia. — É muito recompensador. Pode parecer terrível à primeira vista. Na verdade, no meu primeiro dia, eu cheguei em casa chorando e quis desistir. Mas... Você não tem ideia de como é maravilhoso dar amor a essas crianças e recebê-lo de volta. Todos os dias você ensinar e ver o aprendizado acontecendo, se desenvolvendo pouco a pouco. Todos os dias você acordar e ser uma das pessoas mais importantes na vida de vinte crianças. Todos os dias você mudar vinte mundinhos, plantar boas sementes neles, esperando que floresçam até o fim de suas vidas. É uma grande responsabilidade, mas é incrível. Eles não aprendem só as letras, os números e a se socializar. Eles aprendem sobre amor, respeito, amizade, sobre a vida e sobre si mesmos, ainda que não consigam entender isso perfeitamente agora. E, de verdade, é muito divertido! Eu posso ser criança novamente com eles. Acho que por causa disso meio que nunca vou deixar de ser criança, sabe? E as histórias... Tenho tantas histórias hilárias para contar para o resto da vida! Não tem um dia em que eu não morra de rir nesse trabalho. Não tem um dia em que não me sinta amado e satisfeito... Desculpa. Estou falando muito, não é? Estou te entediando. Eu sempre fico empolgado demais quando falo das crianças. — Não está me entediando. Isso tudo é fascinante. De verdade. É impressionante como a Susie parece se encaixar aqui. — Eu fico feliz, também. É um alívio. Ela é uma menina muito doce e criativa. É adorável... Ela está fazendo acompanhamento psicológico, não está? — Sim. — E... Como ela está? — Acho que ela não entende muito bem a dimensão da coisa. — Quero muito poder ajudá-la a enfrentar isso. — Eu não tenho a menor dúvida de que se tem alguém que pode fazer isso, é você, professor. Ray olhou para ele. Sua expressão estava séria e carregada de alguma coisa que era ao mesmo tempo doce, triste, esperançosa e urgente. Ele abriu a boca para dizer algo, mas, nesse momento, Susie os interrompeu. — Venham brincar no carrossel comigo! — ela pulava como uma pulguinha. Agarrou a mão de Jack e depois a de Ray e foi puxando-os consigo, saltitando pelo caminho.   ****   De volta à sala de aula, Jack não podia acreditar que tinha ficado uma hora rodando em um carrossel infantil, empurrando crianças no balanço e até brincando em uma casinha de bonecas tão pequena que fez com que batesse a cabeça incontáveis vezes. Ele nunca tinha brincado assim com Susie. Talvez nunca tivesse brincado assim na vida. O mais engraçado e absurdo, porém, era o quanto ele estava se divertindo com aquilo, lá no fundo. Agora as crianças estavam se sentando sobre as almofadas no cantinho da leitura. Ray pegou o livro “O Patinho Feio”, sentou-se na sua própria almofada e começou a ler a história. E Jack, mais uma vez, estava ali, no meio do evento, ao lado de Susie. No começo, as crianças não pareciam muito dispostas a prestar atenção na história; muitas delas, inclusive Susie, queriam ficar de pé, andando de um lado para o outro ou pulando, mas Ray sabia como captar a atenção delas naquele momento. Ele não apenas lia a história. Ele dramatizava, mudava a voz quando trocava de personagem no diálogo, fazia gestos e exagerava os tons conforme as emoções que queria passar, mais ou menos como no início da aula com as músicas. Sua tática funcionava, pois as crianças pareciam mergulhar na história; algumas ficavam ouvindo, sentadinhas, de boca aberta e outras faziam perguntas e riam. Susie não se sentou, mas sem dúvida estava ouvindo e adorando a história; ela imitava as expressões de Ray e fazia sua própria atuação do que ouvia da narração, o que fez Jack rir.  Ray pediu que Jack lesse um pouco da história para as crianças, mas ele se recusou. — Deixa para a próxima. — Tudo bem. Mas vai ficar me devendo! Quando a história acabou, Ray fechou o livro e conversou com as crianças perguntando o que tinham achado, fazendo comentários e respondendo perguntas. Depois, pediu que desenhassem numa folha de papel a parte de que mais tinham gostado. Sobraram alguns minutos antes do fim da aula, então Ray perguntou o que as crianças queriam fazer para passar o tempo. Foi quase unânime a decisão de, como no dia anterior, colocarem as orelhinhas de animais para encenarem. — Não vai dar tempo de fazermos uma encenação completa, mas tudo bem, podem pegar as orelhinhas e brincar como quiserem. Susie escolheu um par de chifrezinhos de cervo e colocou na cabeça. — Não poderia ter escolhido melhor — disse Ray, rindo. — Menina saltitante. Ela riu também e começou a saltitar pela sala, dessa vez de propósito. Ray foi até a caixa onde estavam as orelhinhas e escolheu um par de orelhas de gatinho para si mesmo. Colocou na cabeça e olhou para Jack, sorrindo. — Escolha um para você também. — O que? Não. De jeito nenhum. Mas Ray estava com aquele sorriso travesso de novo. Mexeu na caixa e pegou as orelhinhas que estava usando na aula passada, aquelas de ursinho. Ficou na ponta dos pés e colocou-as na cabeça de Jack. — Está uma gracinha. — Você é terrível, garoto. Ray soltou uma gargalhada. — Pessoal, temos um urso gigante na sala! Socorro! As crianças entraram na brincadeira e começaram a gritar fingindo medo. — É sua vez — cochichou Ray. — Agora você imita um urso e corre atrás da gente para nos pegar. — Eu tenho mesmo que fazer isso? Ray apenas deu de ombros. Jack suspirou e se preparou. E então, deixando de vez suas reservas de lado, imitou do melhor modo que pôde o barulho de um urso e começou a correr atrás das crianças, fingindo que ia pegá-las. E elas pareciam se divertir à beça com isso, correndo e rindo sem parar. Jack agarrou Susie, o que só aumentou a algazarra da sala. Ele levantou-a no ar e ela gritou e riu de felicidade.   ****   Ray fez com que as crianças guardassem as orelhinhas e se sentassem para esperar os pais chegarem. Deu um pouco mais de massinha de modelar para que elas se distraíssem e foi até Jack, que agora estava de pé na frente do mural onde estavam expostos os desenhos do dia. — Estou preocupado com a Susie — disse ele, encarando o número dez torto dela; sem dúvida o mais torto da sala. — Será que ela não tem algum problema de coordenação motora? A antiga professora dela dizia que ela tinha déficit de atenção, mas o psicólogo não falou nada sobre isso. — Bobagem — respondeu Ray. — Não se preocupe. Não há nada de errado com ela. Ela tem sua própria maneira de aprender e se desenvolver. Tem seu próprio ritmo. Você vai ver. Ela vai tirar os pontinhos de letra. Vai ficar melhor que o melhor aluno da sala — ele apontou para o desenho de Jack que também estava no mural. Jack sorriu um tanto quanto melancólico. — Será mesmo? — Bem... Você vai ter que confiar em mim. Jack olhou para ele, sério. — Eu confio. Ray pareceu ficar desconcertado por um momento. Não disse nada e depois forçou um sorriso. — Ótimo. Então não precisa se preocupar. As coisas vão caminhar como devem — ele passou a mão delicadamente no desenho de Susie sobre a história do patinho feio. — A Susie é um cisne. Um belíssimo cisne. Mesmo que, para alguns, isso não esteja muito claro agora. Jack ficou olhando para o desenho quase incompreensível da sobrinha. Sentiu-se tão ridiculamente emocionado que pigarreou, confuso, tentando despistar o sentimento. Mas logo estava fitando Ray, pela milésima vez com aquelas mesmas sensações e pensamentos estranhos. Era quase como se ele fosse outra pessoa quando estava perto de Ray. Fazia e sentia coisas que os outros jamais acreditariam se ele contasse; que ele próprio não conseguia acreditar. Como se Ray despertasse nele algo novo. Ou talvez... Algo de essencial dentro dele que houvera adormecido à força. Como é que ele fazia aquilo? Era seu trabalho duro ou era um estranho encantamento, uma espécie de magia que fazia os patinhos feios se transformarem em lindos cisnes? Era isso que ele fazia com as crianças. Uma espécie de dom ou uma incrível habilidade treinada. E que, pelo visto, parecia se estender para além dos alunos. Ele não entendia e aquilo o intrigava. Ele queria entender. Queria entender o que estava acontecendo. Queria entender como ele fazia aquilo. Queria entender quem ele era. — Ray, você gosta de rúgbi? — O que? — Ray foi pego de surpresa. — Rúgbi? — Não quer vir assistir a um jogo comigo no fim de semana? Para conversarmos. Para tomarmos umas cervejas, nos conhecermos melhor... Ray ficou nervoso e agitado. — Para falar a verdade... Eu não sou muito chegado a esportes... Houve alguns segundos pesados e constrangedores de silêncio. — Você pode anotar meu número. Podemos combinar de nos encontrarmos para conversar em algum lugar ou algo assim — disse Ray, por fim. — Sim. Claro. Está bem assim. Ray deu o número do seu celular para Jack. O sinal tocou. — Bem... Então, acho que nos despedimos por hoje — disse Jack. Ray sorriu. — Foi um dia muito especial para mim. — Susie, venha se despedir do professor. — Tchau professor Ray! — Susie abraçou-o. Ray, abaixado, abraçou-a de volta. — Você se divertiu? Eu me diverti muito! — Sim! Eu me diverti muito também! — Que bom. Porque amanhã tem mais. — Oba! — ela começou a saltitar de novo. Ray se levantou e encarou Jack. — Espero que tenha se divertido também. Jack sorriu, pegando a sobrinha no colo. — Fazia tempo que eu não me divertia tanto assim.  
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