Cinco dias.
Cinco dias restavam para que Tom colocasse o seu plano em prática. Ele precisava fazer tudo muito bem calculado. Iria para a festa de noivado do Rodrigo e da Júlia, mataria a Júlia, e depois fugiria para bem longe de Aventine com a Sofia.
Na cabeça dele tudo dava muito certo. Ele já considerou todos os possíveis erros e falhas, não tinha como nada fugir do seu controle.
Em uma whiskeria bem próxima a sua casa, Tom esperava Francisco, um de seus primos que estava pela cidade para ajudá-lo com a empreitada.
Francisco sentou-se à poucos metros de distância do outro, logo batendo no balcão para pedir uma dose para o garçom.
— Tenho notícias que serão do seu interesse.
— Diga logo. O que está havendo? Se veio me apressar, já disse que no sábado estarei terminando a minha missão.
— Rodrigo Montenaro, filho do prefeito, veio me procurar para se aliar com os Messina, ele quer a cabeça de Eugênio Santiago.
Tom apenas arqueou uma das sobrancelhas, não precisava de muito para somar dois mais dois.
— Deixe-me ver se entendi. O tal Rodrigo quer casar com a Júlia para se tornar um dos herdeiros do Eugênio, depois, quer se livrar dele para colocar as mãos na fortuna.
— É, é isso. Eu só não sei como ele pretende colocar as mãos em tudo sozinho, já que o Eugênio tem dois filhos homens.
— É batata, Francisco. Na guerra o Rodrigo deve pretender se livrar de todos eles. Tudo bem, os filhos do Eugenio já tiveram herdeiros, mas os meninos vão demorar a atingirem a maioridade.
— Faz sentido. É… Esse tal de Rodrigo quer abafar a banca mesmo. Bom, eu aceitei a proposta dele.
— Você o que?— Tom se controlou para não gritar.— Consultou o Matteo ou tomou decisão por conta? Se tomou decisão por conta estará em uma sinuca de bico. Meu irmão que é o chefe dessa porcaria que vocês trabalham.
— É claro que eu consultei o Matteo e tenha mais respeito com os negócios da nossa família, desertor.
— Eu vou terminar a missão no sábado e nem um dia mais.
— O Matteo está ocupado com a mulher e os filhos lá em Vigneto, por isso me pediu para conversar com você, cugino. Vamos adiar a morte da Júlia Santiago, será interessante para os nossos negócios. Ganharemos um bom dinheiro, além disso, expandiremos o nosso negócio. Com os Santiago fora do mercado comercial, poderemos nos aliar com o Rodrigo…
— Ao d***o com isso, papagaios! Eu abdiquei da minha vida em Fiorenza, me afastei do meu trabalho como advogado para honrar com uma missão de nossa família, para vingar a morte do meu pai!— Irritado, Tom socou o balcão.
— Não precisa ficar irritado. Só vamos adiar por alguns dias, pelo que entendi, o Rodrigo pretende adiantar ao máximo o casamento com a moça.
— Irritado? Eu estou tiririca!— Explodiu o homem.— Eu combinei com a Sofia de fugir nesse sábado, logo depois de encomendar a alma da Júlia Santiago.
— Agora tudo se explica. Está fazendo esse escarcéu por causa de uma mulher que acabou de conhecer?
— É a mulher que eu amo e isso não é assunto seu. Que o tal Rodrigo não prestava nunca foi uma dúvida, ele é farinha do mesmo saco que o Eugênio, mas pouco me importa a ganância dele e a de vocês também.
— Está tornando as coisas difíceis, Tomásio. O Matt não vai ficar nada feliz com isso.
— Ao d***o com isso. Sábado eu encomendo a alma da Júlia Santiago e vou para bem longe com a Sofia. Vocês que arranjem outro jeito de fazer negócios com o Rodrigo, de preferência, sem me envolver.— Tom disferiu outro tapa com o balcão antes de ficar de pé.
Ele colocou uma quantidade justa de dinheiro no balcão antes de se retirar do estabelecimento.
— Esquentadinho o c***a. Ele que se resolva com o Matteo.— Resmungou Francisco, antes de entornar o copo e acabar com a dose.— Coloque na conta do Thomás.— disse para o garçom antes de ir embora.
Francisco também m.al via a hora de se livrar daquela obrigação. Estava louco para voltar para Rosa Rosso e desfrutar de sua vida boêmia de sempre. Enquanto caminhava pela calçada, ao cruzar a rua, esbarrou com um corpo frágil e feminino.
Com certeza aquela fragilidade não incluía a boca da moça, visto que a mesma o disse um monte de impropérios.
— Papagaios! Ficou cego? Ou é tão burro ao ponto de suas orelhas grandes cobrirem os seus olhos?— Esbravejou a garota de lindos cabelos alaranjados.
Ao redor dela haviam livros espalhados pelo chão.
— Me desculpe, eu estava distraído.— Francisco ficou de joelhos para ajudar a jovem a se levantar, também recolheu os livros que estavam jogados no chão.
— Deveria prestar mais atenção aonde anda. Imagina se tivesse esbarrado em uma criança? Um homem desse tamanho!— Exclamou Soraia, ainda indignada.
— Eu já me desculpei, senhorita. O que quer que eu faça? Que me ajoelhe aos seus pés?
— Grosseirão, p****e… Ainda me fez falar o joelho.— Involuntariamente, a jovem ergueu um pouco a saia, apenas para mostrar o machucado mencionado.
A meia calça que ela levava por dentro havia rasgado naquele mesmo lugar.
Francisco não evitou reparar nas belíssimas pernas da moça.
— Ora, deixe de fricote por causa de um joelho ralado. O que quer? Que eu te leve no colo?
— Quero que vá para o d***o que o parta!— Soraia tomou os livros que carregava das mãos dele e saiu pisando duro.
Francisco respirou fundo e em seguida a seguiu. Por mais que tivesse achado a moça intratável, ele era um cavalheiro.
— Moça, espere.— Bastaram alguns passos e ele a alcançou.
— O que o senhor quer? Já me atirou no chão, já foi grosseiro…
— Foi sem querer! E eu fui grosseiro porque a senhorita não para de me dá coices.
Soraia parou de repente, com os olhos em chamas.
— Agora está me chamando de mula? É mesmo um grosseirão!— Soraia usou sua bolsa de mão para acertar o ombro do mesmo.
— Tudo bem, tudo bem, eu fui rude, mas ainda assim sou um cavalheiro. Ao menos deixe-me ajudá-la com os livros pesados.
Soraia semicerrou os olhos, avaliando o sujeito.
— Quer mesmo se redimir?
— Ora pipocas, mas se é justamente o que estou dizendo…— disse o homem impaciente.
— Eu dou aulas voluntariamente para crianças carentes de um abrigo aqui em Aventine. Também faço costuras, cuido dos pequenos, enfim… O lugar sempre precisa de doações de livros e tecidos. Se quer mesmo se desculpar por sua grosseria, poderia ser um de nossos benfeitores.— Soraia esboçou um sorriso esperto.
Agora foi Francisco quem semicerrou os olhos. A malandrinha era mesmo muito esperta.
A julgar pelas roupas de seda, pelo broche de ouro que levava pendurado no p.eito e pelo perfume adocicado, a tal fulana era uma moça da alta sociedade.
— Tudo bem, eu concordo em contribuir, mas só para você deixar de me espinafrar.
— Vamos.— Sorridente, Soraia voltou a caminhar.
Francisco estava logo atrás dela.
A moça parou em uma loja de livros usados, como havia dito, e fez Francisco pagar uma nota nos volumes de português, matemática e história.
Não satisfeita, Soraia o fez carregar até a escolinha.
— Então, professora... A senhorita trabalha dando aulas todos os dias?
— Eu não sou professora. Claro, tenho estudos, mas não exerço a profissional. Apenas faço trabalho voluntários como uma boa cristã.
— Claro, claro.— Francisco se limitou a dizer aquilo.
Não tinha mesmo paciência para a lógica da elite. Se a tal Soraia dava aulas - ainda que voluntariamente- ela era uma professora, ora bolas.
— E o que a senhorita leciona?— Perguntou o rapaz logo em seguida.
— Português e história. A minha amiga fica com matemática, ela é bem melhor com números do que eu.
— Eu também sou bom com números. Trabalho com contabilidade.
— Então o senhor é contador?— Perguntou a jovem, empolgada.
— Pode-se dizer que sim.
Francisco não tinha faculdade, vinha de uma família mais rústica. Ainda assim, era muito habilidoso com números e o seu conhecimento através dos seus estudos autodidáticos superava o de muitos contadores graduados.
— Ótimo. Hoje a minha amiga, por questões familiares não poderá comparecer, então o senhor irá substituí-la. Não é o máximo? Assim não atrasamos as aulas de matemática.
— Como é?— O homem deteve os passos, olhando com incredulidade para a moça.— A senhora não bate bem dos botões?
— É uma ótima forma de se redimir por ter me atirado no chão e machucado o meu joelho.
— Papagaios...— Resmungou Francisco.— Que mulher encrequeira. A senhorita já me fez gastar uma nota em livros, está me fazendo carregar o peso e ainda quer que eu dê aulas?
— O senhor é um grosseirão, um insensível!— Novamente Soraia o acertou com a bolsa no ombro.— Não se passa uma generosidade na cara. Além disso, é pelas crianças carentes. O que de mais importante o senhor tem para fazer? Garanto que nada, já que estava cruzando a rua da whiskeria quando me atirou no chão.
— Céus...— ele não chegou a completar a frase.
— Se está de má vontade nem sequer precisa carregar os livros, eu levo tudo sozinha.— Soraia chegou a ir na direção dele para tomar os objetos.
Novamente, o lado cavalheiro do Francisco falou mais alto.
— Ora pipocas, a senhorita é impossível.— ele esquivou-se.— Já dei a minha palavra que levarei os livros até a escola, pois levarei.
Soraia não recrutou, apenas bateu os pés e fez a sua trajetória com Francisco no seu encalço.
O rapaz mudou de ideia no minuto em que viu as crianças sentadas ás carteiras.
Francisco não evitou lembrar de si mesmo. Rosa Rosso não era tão desenvolvida quanto Aventine e na época eles contaram com trabalhos voluntários de moças como a Soraia e a tal amiga dela que havia faltado.
Ele observou admirado enquanto Soraia dava as aulas, a didática da jovem era mesmo muito boa.
— Bom, crianças, por hoje é só. Como a tia Júlia não veio hoje...
— O tio Francisco dará aulas de matemática no lugar dela.— disse o rapaz, cortando a outra.
Pela primeira vez desde que se esbarraram na rua, Soraia sorriu para ele.
As crianças pareciam animadas, estavam mesmo dispostas a aprender.
Francisco, então, escreveu os números na lousa e explicou com calma e paciência tudo o que eles precisavam saber.
Soraia também o admirou naquele momento.
— Eu preciso mesmo te agradecer...— disse a jovem, assim que o horário escolar chegou ao fim.
— Não por isso.— disse Francisco.
Soraia estava prestes a dizer algo quando a diretora do colégio os interrompeu. Eles já estavam na porta da saída, de frente para a rua.
Carolina, a diretora do colégio voluntário, também havia dirigido um instituto de caridade para apoiar as famílias dos combatentes que foram servir na Segunda Guerra Mundial que durou até 1945.
— Soraia, espere!— disse a mulher.
Diferentemente da Soraia, a Carolina já era uma mulher mais madura, deveria ter por volta dos quarenta e cinco.
— Acredito que devido ao casamento com o filho do prefeito a Júlia tenha que se ausentar por um tempo... Imagino que já não terá as tardes livres.
— Possivelmente.— Concordou Soraia.
— Imaginei que o seu amigo pudesse substituí-la, ao menos temporariamente.
— O senhor Francisco é um benfeitor que sempre se interessou por obras de caridade. Ele está aqui porque procurava trabalhos voluntários para participar.— Corrigiu Soraia.
Afinal de contas, ela tinha um noivo e não seria nada bom para a sua reputação andar de amizade com um homem desconhecido.
— Claro.— Concordou Francisco, com ironia.
Soraia disferiu uma cotovelada no braço dele.
— Então, o senhor aceita?— Perguntou Carolina para Francisco.
Ele estava prestes a inventar alguma desculpa, mas Soraia não deixou.
— É claro que ele aceita. O senhor Francisco estava me contando que se sentiu muito realizado por poder ter a chance de tornar realidade esse sonho.
— Ah, perfeito. Então pode voltar amanhã. Tenham uma boa tarde.— Em seguida, Carolina se afastou.
Francisco a fuzilou com os olhos.
— O que foi? Você é bem melhor em matemática do que eu. Eu estaria em apuros se tivesse que dar aulas de três matérias.
— Claro... E para salvar a sua pele, a senhorita colocou a corda no meu pescoço.
— Você tem um talento nato para dar aulas, deveria aproveitar isso.
— Claro, imagine.— disse o homem, com ironia.
— Alguém já o disse que tem o costume de repetir a palavra " claro".— Soraia cruzou o portão do colégio enquanto falava com Francisco ao lado dela.
— A sua amiga que dava aulas de matemática é a Júlia Santiago?
Soraia deteve os passos repentinamente, parecia assustada.
— Vocês mencionaram o nome Júlia e a diretora disse que a moça em questão vai se casar com o filho do prefeito.
— Por que isso é do seu interesse?— Soraia rebateu com outra pergunta.
Francisco percebeu o medo nos olhos dela.
— A sua amiga é a filha do Eugênio Santiago, só pode ser.
— Quem é você?— Perguntou Soraia.
— Deixe-me apresentar corretamente... Francisco Messina, ao seu dispor.
O queixo da Soraia quase caiu ao ouvir aquele sobrenome.
Não havia uma única pessoa em Aventine, assim como em Rosa Rosso, que não conhece a guerra dos Santiago e dos Messina.
— O que você quer com a minha amiga?— Perguntou Soraia, trincando os dentes.
— O que mais um Messina pode querer de um Santiago se não a cabeça dele em uma bandeja?