O acaso

2338 Words
Cinco dias. Cinco dias restavam para que Tom colocasse o seu plano em prática. Ele precisava fazer tudo muito bem calculado. Iria para a festa de noivado do Rodrigo e da Júlia, mataria a Júlia, e depois fugiria para bem longe de Aventine com a Sofia. Na cabeça dele tudo dava muito certo. Ele já considerou todos os possíveis erros e falhas, não tinha como nada fugir do seu controle. Em uma whiskeria bem próxima a sua casa, Tom esperava Francisco, um de seus primos que estava pela cidade para ajudá-lo com a empreitada. Francisco sentou-se à poucos metros de distância do outro, logo batendo no balcão para pedir uma dose para o garçom. — Tenho notícias que serão do seu interesse. — Diga logo. O que está havendo? Se veio me apressar, já disse que no sábado estarei terminando a minha missão. — Rodrigo Montenaro, filho do prefeito, veio me procurar para se aliar com os Messina, ele quer a cabeça de Eugênio Santiago. Tom apenas arqueou uma das sobrancelhas, não precisava de muito para somar dois mais dois. — Deixe-me ver se entendi. O tal Rodrigo quer casar com a Júlia para se tornar um dos herdeiros do Eugênio, depois, quer se livrar dele para colocar as mãos na fortuna. — É, é isso. Eu só não sei como ele pretende colocar as mãos em tudo sozinho, já que o Eugênio tem dois filhos homens. — É batata, Francisco. Na guerra o Rodrigo deve pretender se livrar de todos eles. Tudo bem, os filhos do Eugenio já tiveram herdeiros, mas os meninos vão demorar a atingirem a maioridade. — Faz sentido. É… Esse tal de Rodrigo quer abafar a banca mesmo. Bom, eu aceitei a proposta dele. — Você o que?— Tom se controlou para não gritar.— Consultou o Matteo ou tomou decisão por conta? Se tomou decisão por conta estará em uma sinuca de bico. Meu irmão que é o chefe dessa porcaria que vocês trabalham. — É claro que eu consultei o Matteo e tenha mais respeito com os negócios da nossa família, desertor. — Eu vou terminar a missão no sábado e nem um dia mais. — O Matteo está ocupado com a mulher e os filhos lá em Vigneto, por isso me pediu para conversar com você, cugino. Vamos adiar a morte da Júlia Santiago, será interessante para os nossos negócios. Ganharemos um bom dinheiro, além disso, expandiremos o nosso negócio. Com os Santiago fora do mercado comercial, poderemos nos aliar com o Rodrigo… — Ao d***o com isso, papagaios! Eu abdiquei da minha vida em Fiorenza, me afastei do meu trabalho como advogado para honrar com uma missão de nossa família, para vingar a morte do meu pai!— Irritado, Tom socou o balcão. — Não precisa ficar irritado. Só vamos adiar por alguns dias, pelo que entendi, o Rodrigo pretende adiantar ao máximo o casamento com a moça. — Irritado? Eu estou tiririca!— Explodiu o homem.— Eu combinei com a Sofia de fugir nesse sábado, logo depois de encomendar a alma da Júlia Santiago. — Agora tudo se explica. Está fazendo esse escarcéu por causa de uma mulher que acabou de conhecer? — É a mulher que eu amo e isso não é assunto seu. Que o tal Rodrigo não prestava nunca foi uma dúvida, ele é farinha do mesmo saco que o Eugênio, mas pouco me importa a ganância dele e a de vocês também. — Está tornando as coisas difíceis, Tomásio. O Matt não vai ficar nada feliz com isso. — Ao d***o com isso. Sábado eu encomendo a alma da Júlia Santiago e vou para bem longe com a Sofia. Vocês que arranjem outro jeito de fazer negócios com o Rodrigo, de preferência, sem me envolver.— Tom disferiu outro tapa com o balcão antes de ficar de pé. Ele colocou uma quantidade justa de dinheiro no balcão antes de se retirar do estabelecimento. — Esquentadinho o c***a. Ele que se resolva com o Matteo.— Resmungou Francisco, antes de entornar o copo e acabar com a dose.— Coloque na conta do Thomás.— disse para o garçom antes de ir embora. Francisco também m.al via a hora de se livrar daquela obrigação. Estava louco para voltar para Rosa Rosso e desfrutar de sua vida boêmia de sempre. Enquanto caminhava pela calçada, ao cruzar a rua, esbarrou com um corpo frágil e feminino. Com certeza aquela fragilidade não incluía a boca da moça, visto que a mesma o disse um monte de impropérios. — Papagaios! Ficou cego? Ou é tão burro ao ponto de suas orelhas grandes cobrirem os seus olhos?— Esbravejou a garota de lindos cabelos alaranjados. Ao redor dela haviam livros espalhados pelo chão. — Me desculpe, eu estava distraído.— Francisco ficou de joelhos para ajudar a jovem a se levantar, também recolheu os livros que estavam jogados no chão. — Deveria prestar mais atenção aonde anda. Imagina se tivesse esbarrado em uma criança? Um homem desse tamanho!— Exclamou Soraia, ainda indignada. — Eu já me desculpei, senhorita. O que quer que eu faça? Que me ajoelhe aos seus pés? — Grosseirão, p****e… Ainda me fez falar o joelho.— Involuntariamente, a jovem ergueu um pouco a saia, apenas para mostrar o machucado mencionado. A meia calça que ela levava por dentro havia rasgado naquele mesmo lugar. Francisco não evitou reparar nas belíssimas pernas da moça. — Ora, deixe de fricote por causa de um joelho ralado. O que quer? Que eu te leve no colo? — Quero que vá para o d***o que o parta!— Soraia tomou os livros que carregava das mãos dele e saiu pisando duro. Francisco respirou fundo e em seguida a seguiu. Por mais que tivesse achado a moça intratável, ele era um cavalheiro. — Moça, espere.— Bastaram alguns passos e ele a alcançou. — O que o senhor quer? Já me atirou no chão, já foi grosseiro… — Foi sem querer! E eu fui grosseiro porque a senhorita não para de me dá coices. Soraia parou de repente, com os olhos em chamas. — Agora está me chamando de mula? É mesmo um grosseirão!— Soraia usou sua bolsa de mão para acertar o ombro do mesmo. — Tudo bem, tudo bem, eu fui rude, mas ainda assim sou um cavalheiro. Ao menos deixe-me ajudá-la com os livros pesados. Soraia semicerrou os olhos, avaliando o sujeito. — Quer mesmo se redimir? — Ora pipocas, mas se é justamente o que estou dizendo…— disse o homem impaciente. — Eu dou aulas voluntariamente para crianças carentes de um abrigo aqui em Aventine. Também faço costuras, cuido dos pequenos, enfim… O lugar sempre precisa de doações de livros e tecidos. Se quer mesmo se desculpar por sua grosseria, poderia ser um de nossos benfeitores.— Soraia esboçou um sorriso esperto. Agora foi Francisco quem semicerrou os olhos. A malandrinha era mesmo muito esperta. A julgar pelas roupas de seda, pelo broche de ouro que levava pendurado no p.eito e pelo perfume adocicado, a tal fulana era uma moça da alta sociedade. — Tudo bem, eu concordo em contribuir, mas só para você deixar de me espinafrar. — Vamos.— Sorridente, Soraia voltou a caminhar. Francisco estava logo atrás dela. A moça parou em uma loja de livros usados, como havia dito, e fez Francisco pagar uma nota nos volumes de português, matemática e história. Não satisfeita, Soraia o fez carregar até a escolinha. — Então, professora... A senhorita trabalha dando aulas todos os dias? — Eu não sou professora. Claro, tenho estudos, mas não exerço a profissional. Apenas faço trabalho voluntários como uma boa cristã. — Claro, claro.— Francisco se limitou a dizer aquilo. Não tinha mesmo paciência para a lógica da elite. Se a tal Soraia dava aulas - ainda que voluntariamente- ela era uma professora, ora bolas. — E o que a senhorita leciona?— Perguntou o rapaz logo em seguida. — Português e história. A minha amiga fica com matemática, ela é bem melhor com números do que eu. — Eu também sou bom com números. Trabalho com contabilidade. — Então o senhor é contador?— Perguntou a jovem, empolgada. — Pode-se dizer que sim. Francisco não tinha faculdade, vinha de uma família mais rústica. Ainda assim, era muito habilidoso com números e o seu conhecimento através dos seus estudos autodidáticos superava o de muitos contadores graduados. — Ótimo. Hoje a minha amiga, por questões familiares não poderá comparecer, então o senhor irá substituí-la. Não é o máximo? Assim não atrasamos as aulas de matemática. — Como é?— O homem deteve os passos, olhando com incredulidade para a moça.— A senhora não bate bem dos botões? — É uma ótima forma de se redimir por ter me atirado no chão e machucado o meu joelho. — Papagaios...— Resmungou Francisco.— Que mulher encrequeira. A senhorita já me fez gastar uma nota em livros, está me fazendo carregar o peso e ainda quer que eu dê aulas? — O senhor é um grosseirão, um insensível!— Novamente Soraia o acertou com a bolsa no ombro.— Não se passa uma generosidade na cara. Além disso, é pelas crianças carentes. O que de mais importante o senhor tem para fazer? Garanto que nada, já que estava cruzando a rua da whiskeria quando me atirou no chão. — Céus...— ele não chegou a completar a frase. — Se está de má vontade nem sequer precisa carregar os livros, eu levo tudo sozinha.— Soraia chegou a ir na direção dele para tomar os objetos. Novamente, o lado cavalheiro do Francisco falou mais alto. — Ora pipocas, a senhorita é impossível.— ele esquivou-se.— Já dei a minha palavra que levarei os livros até a escola, pois levarei. Soraia não recrutou, apenas bateu os pés e fez a sua trajetória com Francisco no seu encalço. O rapaz mudou de ideia no minuto em que viu as crianças sentadas ás carteiras. Francisco não evitou lembrar de si mesmo. Rosa Rosso não era tão desenvolvida quanto Aventine e na época eles contaram com trabalhos voluntários de moças como a Soraia e a tal amiga dela que havia faltado. Ele observou admirado enquanto Soraia dava as aulas, a didática da jovem era mesmo muito boa. — Bom, crianças, por hoje é só. Como a tia Júlia não veio hoje... — O tio Francisco dará aulas de matemática no lugar dela.— disse o rapaz, cortando a outra. Pela primeira vez desde que se esbarraram na rua, Soraia sorriu para ele. As crianças pareciam animadas, estavam mesmo dispostas a aprender. Francisco, então, escreveu os números na lousa e explicou com calma e paciência tudo o que eles precisavam saber. Soraia também o admirou naquele momento. — Eu preciso mesmo te agradecer...— disse a jovem, assim que o horário escolar chegou ao fim. — Não por isso.— disse Francisco. Soraia estava prestes a dizer algo quando a diretora do colégio os interrompeu. Eles já estavam na porta da saída, de frente para a rua. Carolina, a diretora do colégio voluntário, também havia dirigido um instituto de caridade para apoiar as famílias dos combatentes que foram servir na Segunda Guerra Mundial que durou até 1945. — Soraia, espere!— disse a mulher. Diferentemente da Soraia, a Carolina já era uma mulher mais madura, deveria ter por volta dos quarenta e cinco. — Acredito que devido ao casamento com o filho do prefeito a Júlia tenha que se ausentar por um tempo... Imagino que já não terá as tardes livres. — Possivelmente.— Concordou Soraia. — Imaginei que o seu amigo pudesse substituí-la, ao menos temporariamente. — O senhor Francisco é um benfeitor que sempre se interessou por obras de caridade. Ele está aqui porque procurava trabalhos voluntários para participar.— Corrigiu Soraia. Afinal de contas, ela tinha um noivo e não seria nada bom para a sua reputação andar de amizade com um homem desconhecido. — Claro.— Concordou Francisco, com ironia. Soraia disferiu uma cotovelada no braço dele. — Então, o senhor aceita?— Perguntou Carolina para Francisco. Ele estava prestes a inventar alguma desculpa, mas Soraia não deixou. — É claro que ele aceita. O senhor Francisco estava me contando que se sentiu muito realizado por poder ter a chance de tornar realidade esse sonho. — Ah, perfeito. Então pode voltar amanhã. Tenham uma boa tarde.— Em seguida, Carolina se afastou. Francisco a fuzilou com os olhos. — O que foi? Você é bem melhor em matemática do que eu. Eu estaria em apuros se tivesse que dar aulas de três matérias. — Claro... E para salvar a sua pele, a senhorita colocou a corda no meu pescoço. — Você tem um talento nato para dar aulas, deveria aproveitar isso. — Claro, imagine.— disse o homem, com ironia. — Alguém já o disse que tem o costume de repetir a palavra " claro".— Soraia cruzou o portão do colégio enquanto falava com Francisco ao lado dela. — A sua amiga que dava aulas de matemática é a Júlia Santiago? Soraia deteve os passos repentinamente, parecia assustada. — Vocês mencionaram o nome Júlia e a diretora disse que a moça em questão vai se casar com o filho do prefeito. — Por que isso é do seu interesse?— Soraia rebateu com outra pergunta. Francisco percebeu o medo nos olhos dela. — A sua amiga é a filha do Eugênio Santiago, só pode ser. — Quem é você?— Perguntou Soraia. — Deixe-me apresentar corretamente... Francisco Messina, ao seu dispor. O queixo da Soraia quase caiu ao ouvir aquele sobrenome. Não havia uma única pessoa em Aventine, assim como em Rosa Rosso, que não conhece a guerra dos Santiago e dos Messina. — O que você quer com a minha amiga?— Perguntou Soraia, trincando os dentes. — O que mais um Messina pode querer de um Santiago se não a cabeça dele em uma bandeja?
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