Tessa revirou a cama inteira antes de finalmente conseguir dormir.
Não parava de pensar no fato de que os quadros de Russo eram falsos.
Na proposta indecente que ele a fez.
E que ele não era nada do que ela pensou.
Tessa estava desolada e decepcionada. Ao menos Russo a defendeu de seu irmão que já especulava mil possibilidades de Tessa ter sido deflorada.
Ele demorou um mês para beijá-la…
Um mês para o beijo de despedida.
No dia seguinte Russo iria embora e Tessa jamais voltaria a vê-lo. Era insuportável pensar naquilo.
Na manhã seguinte, Tessa estava um caco.
O seu coração completamente destruído e a mente cansada.
Ela sequer trabalhava com o mesmo ânimo de sempre.
— O que está acontecendo com você? Está calada demais e inquieta demais.— Observou Heloísa, enquanto a outra manipulava o emaranhado de fios que conectava uma linha telefônica a outra.
— O meu mundo virou de cabeça para baixo, foi isso o que aconteceu.— Desabafou Tessa.
— Sem conversas!— Reclamou Vanúbia, a supervisora, se colocando entre as duas.— Será que terei que mudar uma das duas de cabine?
— Não, dona Vanúbia. Só perguntei se a Tessa estava se sentindo bem.— Respondeu Heloísa.
Tessa permaneceu quieta.
— Está se sentindo m.al, senhorita Bretonne?— Perguntou Vanubia.
— Não é nada para se preocupar, dona Vanúbia.
— Então tratem de voltar ao trabalho e menos conversa!
As duas prontamente obedeceram. Tudo o que não precisavam era perder aquele emprego.
No final do expediente, Tessa pôde contar para a sua melhor amiga tudo o que tinha acontecido.
— Céus, Tessa! Um falsificador de quadros. Que p****e.
— Não vou julgá-lo por ter tomado esse caminho depois de ter me contado sua história. Mas o que me incomodou, de fato, foi ele querer que eu seduza o dono da companhia telefônica para depois roubá-lo… Eu fiquei indignada!
— Esse tal Russo é um p****e. É melhor mesmo que vá embora.
— Ainda assim, meu coração está em pedaços. Eu continuo completamente apaixonada por ele.
— Dê tempo ao tempo, minha amiga, isso vai passar.— Garantiu Heloísa.
— Ele se comportou com muita decência quando o Alfredo foi tomar satisfações sobre a minha honra. Ele me defendeu e uma coisa é verdade, Russo sempre me respeitou.
— Não acha que te fazer uma oferta dessas é no mínimo um desrespeito?
— Não sei, Heloísa. Ele cresceu sendo ensinado pelo tal professor a enganar as pessoas. Eu sinto sinceridade quando ele fala em recomeçar ao meu lado…
— Não me diga que por um momento você pensou em aceitar a proposta dele.
— Óbvio que não! Não me conhece?
Heloísa chegou a abrir a boca para responder, quando uma presença inusitada as surpreendeu.
— Boa tarde, meninas.— disse Antônio, o melhor amigo de Russo.
— Antônio Salsa. O que faz aqui?— Tessa cruzou os braços, questionadora.
Desde a forma lamentável com a que Marta tratou tanto Heloísa quanto ela, que Tessa não suportava se deparar com ninguém da família da bruaca.
Ainda que Antônio não tivesse culpa da irmã detestável que tinha.
— Eu vim entregar algo para você.— o homem enfiou a mão no bolso de seu paletó e tirou de dentro um envelope.
Tessa estremeceu ao segurar o objeto e ver a assinatura do Russo. Ela já desconfiava de que se tratava de algo dele.
— Você agora é o homem de recados daquele vigarista?— Perguntou Heloísa, irritada.— A sua família tão perfeita sabe que você se relaciona com esse tipo de gente?— Continuou a moça, irônica.
Tessa quase não reconheceu a amiga perante toda aquela agressividade.
No entanto, ela se afastou para ler a carta enquanto Heloísa ainda discutia com o filho do prefeito.
“ Minha cara Theresa, eu sei que não foi nada fácil saber de tudo aquilo. Se te revelei o meu maior segredo foi por confiar em você e no nosso amor. Eu sei que o que te pedi foi demais, mas era a minha última esperança de recomeçar uma vida nova ao seu lado. Eu sempre vou te desejar as melhores e mais lindas experiências que esse mundo pode oferecer. Não desista de você e nem de buscar a sua felicidade, digo e repito que Girassóis é pequeno para você. Sempre torcerei por sua felicidade, seja lá qual for a sua escolha. Te amo sempre e para sempre.
Bruno Russo”
Ela paralisou, como se tivesse congelado no tempo. A criação tradicional e moral que teve gritava para que ela fingisse que Bruno Russo nunca existiu, mas o seu coração dizia que ela precisava lutar por ele.
Afinal de contas, ela também queria uma vida diferente, também queria experimentar o mundo.
Passaria o resto dos seus anos fugindo, mas ao menos daria um pouco de intensidade na sua vida opaca.
— O trem parte em meia hora, Tessa. Se você realmente gosta do Russo, é melhor se apressar.— disse Antônio, ignorando os insultos de Heloísa.
— Eu não acredito que você está incentivando a minha amiga a se envolver com um vigarista!
— Eu preciso falar com o Russo.— disse Tessa, inquieta.
— Não, você não precisa. Vai acabar afundando a sua vida. Nada vale a nossa liberdade, Tessa.
— Qual liberdade eu tenho, Heloísa? No momento, tudo o que me restou foi um emprego de telefonista. Não consegui começar uma faculdade, não consegui viajar, não consegui trabalhar com o que eu realmente quero. Ao menos terei dinheiro para conhecer o mundo ao lado do homem que eu amo.
— Você não está falando sério.— disse Heloísa, perplexa.
— Do que me adianta tanta moralidade e retidão, se no final das contas eu vou acabar presa a essa cidade bucólica e estagnada?
— Você não está sendo razoável, Tessa. Se pensar mais um pouco…
— Se eu pensar mais um pouco, não chegarei antes do próximo trem.— Tessa caminhou rapidamente no sentido contrário, levando o envelope consigo.
— Vai perder a festa da companhia? Temos pouco tempo para estarmos prontas!— Insistiu Heloísa.
Mas Tessa já estava longe demais.
— Aceite, você não pode influenciar nas decisões de sua amiga.— Falou Antônio, parando logo atrás dela.
Heloísa voltou-se para ele como um furacão.
— A Tessa nunca foi inconsequente desse jeito. Esse malandro vai destruir a vida da minha amiga e eu vou te culpar, seu mensageiro do d***o!
— A Tessa é responsável por escolher seus próprios caminhos, Heloisa. Bem… Temos uma festa em comum para ir. Não quer carona?
— Ofereça carona para o d***o que te parta.— Rosnou a garota, antes de sair batendo o pé.
…
Russo conferiu o relógio de bolso pela terceira vez, estava oficialmente muito ansioso. Aquela carta e os apelos de Antônio foram sua última esperança, Tessa precisava mudar de ideia rápido, ou ele teria que pensar em um outro plano e em outro lugar.
O trem estava chegando e por coincidência um carro de praça parou a poucos metros da estação.
Russo ficou sinceramente aliviado ao ver que era Tessa. Ele chegou a se aproximar do trem para fingir que estava decidido a ir, quando ouviu a voz dela:
— Russo!— Exclamou a garota, correndo na direção dele.
Ela sequer se importou de que todos a olhavam correr e gritar.
— Russo, não entre no trem!— ela gritou novamente.
O homem recuou e voltou-se para ela. Quando Tessa se aproximou, ele a recebeu com um abraço.
— Eu não posso te deixar ir embora.— falou Tessa, mergulhando o rosto contra o p.eito dele.
— Por você eu fico aqui ou em qualquer lugar.
— Eu aceito fazer parte do seu plano.— ela se afastou, o olhando nos olhos.— Mas com duas condições…
— A condição que você quiser.
— Só vamos pegar o suficiente para irmos á Itália e abrirmos o nosso negócio, não quero deixar ninguém na miséria.
— Combinado.
— E essa será a última vez que enganamos alguém.— Continuou Tessa.
— Claro, meu amor.— Russo segurou o rosto dela com as duas mãos.— Se o meu principal objetivo é justamente recomeçar uma vida com você.— ele a beijou diretamente nos lábios, com pouca gentileza.
— Só precisamos pensar como vou fazer para conseguir me aproximar do Carlos. Acredite, ele não é nada fácil.
— Você é encantadora, Tessa. Não existe ninguém melhor do que você para enfeitiçá-lo.
— E-eu não sei. Não sei se conseguiria manter uma conversa com ele. Confesso que aquele homem me intimida.
— Apenas seja você mesma. Você é inteligente, engraçada e interessante. Não fale muito sobre si mesma e use algum vestido verde. Ah, de preferência que realce suas curvas.
A garota arregalou os olhos com a honestidade dele.
— A sua aparência será a porta de entrada. Terá que usar o que você tem de melhor.
— Eu tenho pouco tempo para me arrumar para a festa.
— Então se apresse, Cinderela. Essa noite Carlos Collalto se apaixonará por você.
Fazer o seu chefe se apaixonar por ela se tornou a grande missão da Tessa, ela não descansaria até conseguir seu objetivo.
Seguindo as instruções de seu amante, Tessa usou um lindo modelo verde, bem justo na cintura e um pouco mais solto no quadril, a sua barra medindo logo acima do tornozelo. O decote das costas era em V, chamando atenção para aquele lugar.
Sem dúvida, o verde do vestido realçava o verde dos olhos da Tessa.
Assim que adentrou o lugar, a mulher roubou as atenções. Várias esposas e mulheres da alta sociedade ficaram enciumadas.
Tessa já fez parte do mundo delas e não era nenhuma desconhecida.
Os homens de todas as idades e categorias também ficaram encantados.
Carlos estava bem na sua frente, a poucos metros de distância. Tessa prendeu o ar ao constatar que ele estava lindo. Os olhos furta-cor haviam adquirido uma tonalidade mais esverdeada devido às luzes do ambiente, o cabelo escuro dele dava o contraste. Corajosa, Tessa caminhou na direção do homem. Ainda que discretamente, ele a admirava em silêncio.
— Boa noite, senhor.— disse Tessa.
— Boa noite, senhorita Bretonne.
Ele sabia o nome dela, aquilo a surpreendeu.
— Eu quero agradecer o convite. É um prazer poder comemorar esse momento com o senhor.— ela arriscou um olhar de flerte.
Ainda que com sua postura rígida e sua expressão séria, Carlos segurou uma das mãos coberta com a luva de cetim e pousou um beijo bem no dorso.
O coração de Tessa disparou ao perceber que começava a ser correspondida ( ainda que não fosse tão óbvio).
— É uma das nossas funcionárias mais dedicadas. A senhorita merece.— Carlos retribuiu ao olhar de flerte.
Tessa tinha certeza, estava indo pelo caminho certo.
De repente, uma presença masculina se pôs entre eles.
Se tratava de Danilo Fountanier, um dos investidores da companhia. Tessa percebeu o olhar de cobiça do homem, mas fingiu acreditar que ele tinha se aproximado apenas para cumprimentar Carlos.
O problema é que Danilo não sabia falar português muito bem.
E em contrapartida, Carlos não falava nada de francês.
— Félicitations, Carlos. C’est une belle fête et l’ambiance est très bien fréquentée. L’organisateur ou l’organisateur mérite tous les mérites.
Tessa percebeu que Carlos estava perdido, então traduziu para ele.
— Ele o parabenizou pela festa, disse que está linda e muito bem frequentada. Também deu os méritos á pessoa que organizou.— Murmurou Tessa para Carlos.
O homem piscou os olhos algumas vezes, sem saber o que responder.
— Bom… O agradeça por mim.
Tessa prontamente voltou-se para Danilo.
— Monsieur Collalto est très reconnaissant pour vos compliments et aussi pour votre présence.— disse Tessa para o tipo.
— Você não disse apenas um “ obrigado” com todo esse palavrão, não é?— Perguntou Carlos para a moça.
— Eu disse que o senhor está grato com os cumprimentos e também com a presença dele.— Explicou a moça.
— Magnifique. Você tem uma voz suave.— Elogiou o francês.
— Eu pensei que não falasse em português.— Rosnou Carlos.
— Falo um pouco.— Danilo deu de ombros.
Um silêncio constrangedor estava prestes a começar quando alguém anunciou que o baile iria começar.
— Posso tirrrrá-la para uma dança?— Perguntou o francês, com seu “ erre” carregado.
Carlos ficou quieto.
O outro homem esboçava um sorriso vitorioso. Não era segredo para ninguém que, devido a sua perna manca, Carlos não conseguia dançar.
— Eu agradeço o convite, mounsieur, mas eu estava em uma conversa com o senhor Collalto quando chegou.
Danilo não fez mais nenhum comentário, apenas aceitou a rejeição e foi embora.
Carlos fingiu não adorar a recusa.
— Não gosta de dançar?
— Não faço questão. Eu prefiro observar os outros dançando, acho que faz parte do conjunto da festa.
— Você prefere narrar uma história ou fazer parte dela?
— As vezes os narradores fazem parte da história, outras, eles só observam. Chegou o meu momento apenas de observar.— Tessa deu as costas para Carlos e concentrou-se em assistir os pares.
Sua amiga Heloísa estava lá, dançando com um dos convidados.
Heloísa não ficava atrás da Tessa no quesito beleza, ela estava estonteante. Como, por motivos óbvios, Tessa se atrasou, as duas não conseguiram ir juntas.
Tessa acenou para a amiga, que a respondeu com um aceno na cabeça.
Carlos permaneceu quieto, apenas olhava para a garota que estava em sua frente. Com certeza era bem mais interessante do que apreciar outras pessoas dançando.
Mas naquele momento ele desejou mais do que nunca que a sua outra perna funcionasse.
Ele desejou mais do que nunca poder tirar Tessa para dançar.