Enfeitiçado

2522 Words
Como o esperado, Carlos ficou quieto no canto. Embora fosse jovem, bonito e muito rico, o defeito de sua perna o fazia sentir menos homem. Para Tessa, era óbvio o incômodo dele. Ela permaneceu ao seu lado, sempre iniciando conversas novas e interessantes. Carlos era inteligente e interessante, Tessa ficou surpresa ao conhecer o lado mais sensível do homem. De longe, os observava alguém que não estava gostando nada daquela aproximação. A jovem estava no canto do salão, espiando-os, e ao ver a supervisora vagando por perto, ela prontamente puxou a mulher pelo antebraço. — Quem é essa polaca que está de conversinha com o Carlos?— Perguntou Lucinda, contrariada. Os olhos escuros da garota estavam em chamas e o seu belo nariz arrebitado bem torcido. Vanúbia, que até então não tinha percebido a i.ntimidade com a que Tessa conversava com o patrão, estreitou os olhos para observar melhor o que acontecia. — Essa é a Tessa, uma das telefonistas. Não conhece? Theresa Bretonne. Vem de uma família boa, mas depois da morte do pai… — Não me interessa a história triste dessa baranga. Tire-a de perto do Carlos e isso não é um pedido. Não preciso te lembrar que você me deve muitos favores, não é? — Não se preocupe, senhorita Lucinda. Farei com que a Tessa fique bem longe do doutor Carlos. — Acho bom.— Lucinda ergueu o queixo, autoritária. Vanúbia caminhou determinada até o outro lado do salão, precisava pensar em uma forma de afastar Tessa do chefe. — Eu assisti a peça da Ofélia Alves em São Paulo, foi maravilhoso. Sou fã da representação dela.— Comentou Tessa. Foi o único que Vanúbia conseguiu ouvir com clareza. — Eu penso em trazê-la para uma apresentação aqui, em uma das festas da empresa.— Confessou Carlos. Aquelas festas da companhia eram a única forma dos funcionários se misturarem com a diretoria e acontecia pouquíssimas vezes no ano. Vanúbia aproximou-se como quem não quer nada, antes de se dirigir para Carlos: — Com licença, doutor. Eu preciso conversar com a Tessa. — Claro.— Concordou o homem. Vanúbia estranhou toda aquela simpatia vindo do chefe. Carlos costumava ser um homem sisudo e antipático. Não era possível que Tessa com poucas horas de conversa tenha arrancado dele toda aquela amabilidade. Aquilo deixou Vanúbia ainda mais irritada. Além de complicar muito a sua relação com Lucinda, que tinha a obsessão de casar com Carlos desde antes do acidente que ele sofreu na perna, o seu cargo de supervisora estava em risco. Tessa se afastou do Carlos para ir com a Vanúbia até o canto do corredor, onde se tinha acesso aos banheiros. — O que pensa que está fazendo? Você não tem a mínima noção de hierarquia, não é, garota? — Não sei do que está falando.— Rebateu Tessa, parecendo imparcial. — Você chegou na festa e foi imediatamente cumprimentar o chefe como se tivesse alguma i.ntimidade com ele. — Apenas o agradeci pelo convite. Acontece que chegou um convidado que era francês, como o doutor Carlos não sabe falar francês eu o ajudei traduzindo a conversa… — Poupe suas explicações. O seu comportamento atirado foi muito m.al visto pelos convidados. — Pelos convidados, ou por uma convidada em especial?— Tessa olhou enviesado para Lucinda, que as observava de longe. Vanúbia agarrou o antebraço dela com toda a força de sua raiva. — Se continuar com o seu atrevimento, eu te mando embora.— Ameaçou a mulher. Tessa puxou o braço para trás, com rispidez, dando um solavanco no corpo da outra. — Aqui você não é minha chefe, dona Vanúbia. Inclusive, eu posso te responder de igual para igual.— Tessa a empurrou com força, pelo ombro. Vanúbia arregalou os olhos, perplexa. — Você vai embora dessa festa, sem escândalos, e amanhã acertaremos suas contas na companhia telefônica. Tessa a respondeu com um sorriso de canto, desafiadora. Estava arriscando demais ao confiar no seu potencial daquela forma, mas com aquelas poucas horas de conversa pôde perceber que apesar de rabugento, Carlos era um homem justo. Ela voltou para o exato lugar em que estava, tinha armado uma boa estratégia. Carlos conversava com um dos convidados, mas logo interrompeu a conversa para se despedir dela. — Doutor Carlos, mais uma vez, muito obrigada pela oportunidade de comparecer ao aniversário da companhia. Eu realmente preciso ir embora. — Ah, mas está tão cedo.— Interferiu Asis, o convidado. Asis era árabe, muçulmano e morava há pouco tempo no Brasil. Casado com três esposas, procurava uma quarta. Por isso, todas as moças solteiras e de boa família de Girassóis fugiam dele, apesar de ser muito rico e bonito. — Eu realmente preciso ir. Eu acho que machuquei o meu pé. — Não é seguro uma moça voltar para casa sozinha, ainda mais com o pé machucado. Vejo que sua amiga Heloísa está acompanhada com o filho do prefeito.— Observou Carlos. — Não quero estragar a festa para Heloísa. O bondinho fica logo perto daqui. — Ah, mas você está com o pé machucado. Ainda assim terá que caminhar e pode acabar se desequilibrando no bondinho. Eu mesmo te levo.— disse Carlos. — Eu não quero incomodar, doutor Carlos. — De forma nenhuma. Você mora tão perto, dentro de vinte minutos eu te deixo e estou de volta, o percurso é rápido. — Sendo assim, eu aceito.— Tessa deu um sorrisinho constrangido. Vanúbia estava parada a poucos metros de distância, logo atrás. Ela ficou estática, com cara de tacho. Enquanto caminhava ao lado do Carlos, Tessa olhou rapidamente para trás, por cima do ombro, lançando para a outra mulher um olhar de vitória. Sem saber, Vanúbia acabou fazendo um favor para os planos dela. Lucinda também os observava com cara de poucos amigos e aquela façanha não seria nada fácil para Vanúbia ter que lidar. Durante a trajetória, conversa era o que não faltava para Tessa e Carlos. Tessa percebeu que os dois tinham muito em comum. Carlos era apaixonado por artigos científicos entre várias outras leituras. Carlos amava teatro, ópera e cinema, assim como ela. — O meu sonho é poder assistir um filme falado. Eu sei que o cinema mudo já foi uma grande evolução, mas será que um dia conseguiremos ouvir as vozes dos personagens? — Eu tenho um amigo americano que é cinematógrafo, ele pesquisa bastante a respeito da possibilidade, e acredita que daqui a alguns anos será possível, sim, desenvolver o cinema falado. — Pena que no Brasil as coisas demoram a chegar.— Lamentou Tessa. — Não desanime. Os anos 20 é a era da mudança, estamos deixando para trás o mundo retrógrado do século 19. — O maior desafio é driblar a mente preconceituosa das pessoas. O que adianta avançarmos apenas nas tecnologias, se a mentalidade não acompanha? — Tem toda razão.— Concordou Carlos. Ele parou o automóvel bem de frente para a casa que Tessa morava com a família. — Eu gosto da sua forma de ver a vida. — O senhor é um homem muito interessante, doutor. Foi muito bom ter a oportunidade de conversar. — Eu te digo o mesmo, Tessa. Bom, estás entregue, até segunda-feira. — Até segunda-feira.— disse a garota, saindo do carro. Ela acenou para ele antes de adentrar o portão. Carlos a observou até que ela sumisse de seu campo de visão. Logo depois, ele foi embora. Carlos simplesmente sorriu. Ele ficou surpreso com toda aquela curiosidade que vinha sentindo a respeito da moça. Será que depois de tantos anos havia voltado a se interessar por alguém? … No dia seguinte, Tessa amanheceu com a presença ilustre da Heloísa em sua casa. A julgar pela cara de poucos amigas da moça, ela não estava gostando nada da aproximação da Tessa com o chefe. — Você vai mesmo levar essa história adiante?— Heloísa estava de braços cruzados, sentada em uma das poltronas do quarto da Tessa. — Achei que não tinha percebido. Estava tão ocupada fazendo companhia ao filho do prefeito. Heloísa bufou, contrariada. — O p****e do Antônio foi me buscar em casa, acredita? Eu fiquei sem jeito de destratá-lo na frente da minha família. Além do mais, meu pai se sentiu mais seguro em me deixar ir na companhia de um rapaz conhecido. — O Antônio não parecia tão intragável ontem. Vocês pareciam bem próximos.— Provocou Tessa, insinuante. — Ao menos não me trataram m.al por ser n.egra. Quer saber? Eu confesso, o Antônio foi mesmo bem agradável, e eu me senti parte de alguma coisa ao lado dele. Tessa ficou em silêncio. Jamais tiraria o direito da sua amiga de se sentir excluída, afinal, só ela sabia o que sentia na pele por causa de sua cor. — Tudo bem, me desculpe por fazer brincadeiras com esse assunto, eu sei que é delicado para você. Heloísa respirou fundo, sabia que sua amiga não tinha a intenção de deixá-la desconfortável. Ela inclinou o tronco para a frente, em seguida, segurou nas mão da outra que estava logo á sua frente, na outra poltrona. — Não estamos falando de mim, Tessa. Eu estou preocupada com o rumo que a sua vida pode tomar por causa daquele borra tintas. — O Bruno é o homem que eu amo e vou fazer o possível e impossível para ter um futuro com ele. Só vamos pegar dinheiro o suficiente para recomeçarmos na Itália. — Já pensou na possibilidade de dar errado? Já pensou que você pode parar atrás das grades junto com ele? — A vida é feita de riscos, Heloísa. Eu quero mais do que essa cidadezinha bucólica e provinciana. — É um direito seu, mas faça isso fazendo as coisas de forma correta. — Eu não vou voltar atrás com a minha palavra e eu espero que respeite a minha decisão. — Não tenho outra alternativa, tenho? Eu só espero que eu esteja errada, Tessa. — Vamos deixar esse assunto de lado. Agora me fale, acha que existem chances de você ter um relacionamento com o filho do prefeito? — Não confio de que o Antônio queira me levar para o altar. Eu imagino que busque um tipo de relação da qual eu não me identifico nenhum pouco. — Eu acho que você não deveria julgar sem procurar conhecê-lo melhor. Veja a forma com a que ele se comporta com você e também com os outros quando está com você. — Imagina o inferno que seria a minha vida? Ter que aturar Marta Salsa e aquela família preconceituosa do Antônio. — É um desafio que você enfrenta todos os dias, Heloísa. Vai deixar de ser feliz por medo? Além do mais, Marta Salsa morderia a língua depois da desfeita que te fez na casa dela. Heloísa parecia pensativa com as palavras da amiga, mas ainda assim, não tinha cabeça para pensar naquilo. A situação da Tessa era preocupante demais e Heloísa não sabia o que fazer. — Bom… Eu já falei o que eu acho. E acredito que o seu emprego esteja mesmo comprometido, dona Vanúbia e a Lucinda não gostaram nada da sua chegada. Você foi muito gananciosa indo direto ao dono da festa. — Isso é o que veremos. Eu pude perceber a forma com a que Carlos me olhava ontem. Ele está enfeitiçado por mim e não vai admitir que Vanúbia faça nada. — Cuidado com toda essa auto-confiança, Theresa. Você é linda, inteligente e encantadora, mas não é uma deusa de outro mundo. Além do mais, Lucinda é uma mulher muito perigosa. Ela sempre foi apaixonada pelo doutor Carlos e a sua fama de voluntariosa não é em vão. Lembra o que ela fez com a Cecília Matarazzo? Foi ela quem fez o Carlos e uma boa parte da nata da nossa cidade flagrar a garota na cama com o João Muniz. A pobre Cecília saiu humilhada da festa e nunca mais colocou os pés em Girassóis. Se bem que o que a Cecilia fez foi um absurdo. Nunca imaginei que ela pudesse ser uma polaca. Uma mulher que trai o noivo e se deita com um homem que não é o marido… — Eu não tenho medo da Lucinda. O que ela fizer comigo, eu devolvo dez vezes pior. — Lucinda tem muito dinheiro e influência na cidade, Theresa. Sabe muito bem como funciona o nosso mundo… — Pode ser. Mas quer saber? Nem todo o dinheiro dela pode comprar a minha inteligência ou a minha beleza. Eu vou me casar com o Carlos e se a Lucinda entrar no meu caminho, eu a atropelo. — Eu não estou te reconhecendo, Tessa. — Eu nunca precisei proteger o meu futuro como agora, Heloísa. Eu não vou permitir que aquela rastaquera emproada estrague os meus planos com o Bruno. Depois, se ela quiser, pode ficar com as minhas sobras. — Você está sendo muito c***l, Theresa. E quer saber? Eu estou decepcionada com você.— Heloísa ficou de pé e caminhou até a saída, cabisbaixa. Tessa respirou fundo, odiava brigar com a sua melhor amiga. Ela sentia muito por ter que enganar o Carlos daquela forma, mas era por um motivo maior. Estava apaixonada demais pelo Russo para desistir dele tão fácil. No final da tarde, como o combinado, Tessa foi ao encontro do Russo na galeria. O lugar estava repleto de compradores, como de costume. Russo era talentoso demais, isso era indiscutível. Ao ver Tessa, ele logo inventou uma desculpa qualquer e se afastou dos compradores. — Aí está você. Eu estava louco para te ver. Quero saber de todas as novidades. — Eu vou te esperar na casa de chá. Quando os compradores forem embora, você me encontra lá.— disse Tessa, antes de ir para o local mencionado. Aproximadamente 10 minutos depois, Russo estava lá. A casa de chá ficava a poucos metros da galeria e da companhia. Tessa escolheu um lugar próximo à janela que dava para a vista de um pequeno jardim na parte detrás. Ela adorava observar o movimento dos pássaros que carregavam o pólen das flores. — Eu sabia que era só o Carlos reparar melhor em você para ficar enfeitiçado. — Eu acho que em pouco tempo conseguirei fazer com que ele se apaixone por mim, mas temos um problema. Lucinda Von Stein é apaixonada por Carlos e talvez seja uma pedra no meu sapato. Ela é rica e influente, por isso, muito provável precisarei da sua ajuda para me livrar dela. — Não se preocupe. Ela não é páreo para você, tenha certeza. — Ao que tudo indica, amanhã a Vanúbia me mandará embora a pedido da Lucinda e eu estou me fiando na proteção do Carlos. — Assim que chegar na companhia procure saber dele. Será melhor conversar com o Carlos primeiro e garantir que ele ficará do seu lado. Pegue aquela bruaca de surpresa. — Eu vou garantir que Vanúbia não seja mais um risco para mim. Eu vou fazer Carlos enxergar que ela usa o poder que tem sobre nós para agir de acordo com suas vontades pessoais. Eu vou tirar aquela mulher do meu caminho.
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