DA.VIDA VII

1051 Words
Hoje era o grande dia, o fim do mês e também a data marcada para ver meu pai. Todos da família se apresentavam ao hospital, no dia trinta durante o ano inteiro. Era como um mantra, levantavamos, tomávamos nosso banho e após nos vestimos, seguiamos em jejum até o hospital do câncer. — Como está se sentindo? Chegou em casa e subiu para o quarto, nem mesmo jantou. — Rebeca fala e desperto-me dos meus pensamentos, estávamos apenas os dois dentro de seu carro, já que Isaque buscaria Yasmin na aula de canto. Eu não conseguia esquecer a noite passada, como o vestido amarelo de Saanvi queimava meus olhos, mas principalmente, como aquela mulher falara comigo. Ouvir suas palavras só pareciam dar mais credibilidade ao que eu tinha planejado fazer no fim destes trezentos e sessenta e seis dias. — Estou bem. — Minto. Eu havia aprendido fazer isso, depois de perceber o quanto a sinceridade parece deixar as pessoas desconfortáveis. — Só estou irritado em ter que ir ao hospital todo mês. — Ele só se preocupa conosco, por favor, tente não discutir com o papai. — Implora e concordo, voltando a observar a estrada pela janela aberta. O hospital recém reinaugurado, era bastante majestoso. Ele havia sido renomeado também, agora se chamava "Hospital Agatha Sullivan". Era irônico o hospital do câncer ter o nome da mulher que morreu dentro dele. — Rebeca! — Débora corre em nossa direção. Elas se abraçam forte e demoradamente. — Davi! Você está tão lindo, é idêntico a tia Agatha. — Sorri e me prende em seus braços, deixando-me ansioso. — Me desculpe, eu esqueci que não gosta de abraço. — Onde está o papai? — Rebeca muda de assunto, sorrindo levemente para mim. — Está no escritório, vamos indo. A Melissa e o Bruno já estão aqui e Isaque também, junto da Yasmim. — Fala e seguimos ao elevador, logo chegando no segundo andar. Era um hospital luxuoso e havia algumas fotos de minha mãe pela sala de espera, ela pintava as paredes da ala infantil e contava histórias às crianças. Meu coração de repente se encontrava moído e um certo rancor me invadia ao ver tudo que perdi por não tê-la ao meu lado. — Oi princesa. — Isaque abraça sua esposa e Yasmim caminha, se pondo ao meu lado. — Pronto para a sessão tortura mensal? Espero que esteja com o sangue limpo, não quero ter de vir aqui mais do que uma vez. — Desejo o mesmo a você, vê se não pega câncer, beleza? — Retruco e ela força um sorriso, passando a mão em minhas costas levemente. A porta do consultório se abre, todos se levantam como se um presidente ou a noiva do casamento estivesse prestes a se apresentar. Papai sai pela porta e olha para cada um de nós, ele está bem arrumado, com a barba feita, os cabelos penteados e a pele limpa sem nenhum resquício de tristeza. Ele parecia ter se esquecido dela e seguido com sua vida. — Obrigado por virem, podemos começar? — Sorri e todos concordam. Somos levados a uma grande sala, onde sangue é tirado de nós e levado aos laboratórios dentro do próprio hospital. Não demora muito até que os resultados saem e todos riem alegremente e se abraçam, comemorando por não terem câncer ou não voltarem a ter. Após toda a comemoração da família Sullivan, seguimos ao restaurante da família do Isaque e eles riem um pouco mais e também comem para finalizar o jejum. Mas, eu não me alegro e nem mesmo sinto fome, pois sou incapaz de entender o porquê daquele martírio mensal. — Por que não está almoçando com todos? — Ele se aproxima e meu coração se alegra, como um sentimento involuntário. — Estou sem fome, senhor. — Respondo, observando um ponto fixo. Era uma loja de roupas logo a frente, nela não havia vendedores gritando e convidando para entrar, eram apenas enormes computadores, onde sua mercadoria era pesada, calculada, paga através do cartão e embalada. — Mas, estava de jejum como os outros. Deve se alimentar direito, Davi. — Diz e sorrio de forma debochada. — As enfermeiras me contaram sobre as feridas no seu braço, não deveria fazer isso. — Sim, senhor. Irei fazer como desejar. — Respondo, me preparando para sair dali o mais rápido que posso. Ele me toca e quero empurra-lo para longe. — Por que age assim? Como se não importasse com sua própria vida? Ela deu a vida para que pudesse viver. — Responde e o olho confuso. — O que está dizendo? — Questiono e o mesmo tira seus olhos de minha face. — Vamos, me diga, por que fala como se eu fosse o culpado pela morte de minha mãe? — Eu não disse isso, Davi. Só não quero que machuque a si mesmo, como se sua vida não importasse. — Ela não importa. E o senhor não tem o direito de me dizer o que devo ou não fazer, essa é a primeira vez que me vê no mês. Não acha que DEVERIA ser mais presente?! — Grito e meu ouvido estronda. — O que está acontecendo? — Rebeca vem em nossa direção e me afasto, a implorando que me tirasse dali. — Ei sogrão, acho que vamos indo! Aparece qualquer dia, Davi e eu estamos construindo a arca de Noé. — Isaque ri, pondo a mão em meu ombro e me levando para o carro. Me sento no banco traseiro e vejo que meus olhos derramam lágrimas, minha pele queima e um zumbido ecoa em meus tímpanos. — Vai ficar tudo bem, só pense em algo bom. — Não há nada bom para pensar. — Respondo e Isaque suspira, tocando minha mão. — Sempre há algo bom para se pensar, só precisa se dar mais uma chance. — Sua voz me faz lembrar de Saanvi e uma certa calmaria parece me invadir. Me lembro de sua piada sobre minha síndrome no dia anterior e de como suas palavras pareciam macias, após receber uma onda de preconceito daquela mulher no cinema. — Isaque, você poderia me deixar em um lugar no caminho para casa? — Pergunto e ele me olha com pesar. — Não é no cemitério, quer dizer, não um cemitério de pessoas.
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