— Sabe, também não gosto de compartilhar lugares especiais para mim. — Saanvi surge e assusto-me com sua chegada.
— Desculpe, devo ir embora então. — Respondo, levantando-me da mesma mesa que nos encontrávamos no dia anterior.
— Não deve nada, fique. Estou mesmo precisando de alguém que me escute. — Ela fala e a olho esperando que diga. O desinteresse de Saanvi sobre minha vida particular, fazia com que tudo fosse mais fácil.
— Então diz, teve problemas com sua família?
— Indago e a garota coloca sua mochila de costas, sobre a mesa. Ela abre e retira uma marmita com macarronada.
— Você gosta de macarrão? Sei que pessoas com TEA tem seletividade alimentar. — Fala e sorrio levemente. — Desculpe, não quero parecer uma stalker.
— Bom, eu achei válido. É normal querermos conhecer um pouco sobre a pessoa em que estamos convivendo. E sim, eu gosto de macarrão.
— Jura? Então coma comigo, comprei vindo para cá. Por incrível que pareça, eu trouxe um outro garfo. Será que foi o Espírito Santo que me avisou que estaria aqui?
— Se ele avisou, então sou grato. — Digo e me surpreendo. Eu havia aprendido a fazer piadas.
— Você não segue o Hinduísmo?
— Não, minha família é cristã. Olhe, fique com a marmita. — Fala, pondo um pouco de macarrão sobre a tampa.
— Obrigado. — Respondo e ela move a cabeça, como se dissesse que não precisava de agradecimentos. Ficamos em silêncio por um tempo, enquanto comemos e me esqueço por alguns minutos de tudo que havia passado anteriormente.
— Sabe, tenho tido problemas com os meus pais. Eles sempre foram super protetores, mas de um tempo para cá tem se tornado angustiante.
— Eu não sei muito bem o que é isso... — Falo e Saanvi me olha pedindo desculpas silenciosamente. — Minha mãe faleceu quando eu era um bebê e meu pai, bom, não temos um relacionamento muito próximo. — Confesso e coloco o garfo sobre a vasilha, sentindo meu coração palpitar. Como todas aquelas palavras saíram tão facilmente? Por que Saanvi me deixava tão inquieto e confortável ao mesmo tempo? — Me desculpe, não quero falar sobre mim.
— Tudo bem falar, não conto para ninguém que está agindo como um mortal qualquer.
— Fala e a olho sem entender. Ela sorri e retribuo, ao compreender que havia sido uma piada. — Sabe, a minha avó foi a primeira que se converteu ao cristianismo e meu pai foi levado por ela para a igreja. Mas, eles não agem como cristão...
— Minha família é cristã, minha irmã e o esposo parecem bons cristãos. Não que eu saiba muito sobre "ser cristão".
— A minha avó é caridosa, respeita toda e qualquer pessoa e ama falar sobre Jesus. Ela está em uma obra missionária neste exato momento.
— Por isso disse que não sabia se ela estava viva? — Pergunto e Saanvi suspira, mexendo o macarrão de um lado para o outro. — Pare, por favor. — Peço, ao sentir ansioso com a bagunça que fazia.
— Me desculpe. — Pede, limpando os olhos que estão cheios de lágrimas.
— Eu-eu fiz algo? Peço perdão, ainda estou tentando aprender a agir de forma empática.
— Respondo e ela ri levemente, olhando para o outro lado.
— Não é por sua causa, nunca irá me fazer chorar, Davi. Estou triste pela preocupação que sinto em meu coração, a minha avó é a pessoa mais importante para mim, não quero perdê-la.
— Dependendo do país onde ela esteja, pode realmente acontecer de perdê-la. Mas, espero que isso não aconteça. — Falo um tanto sem graça e Saanvi gargalha. — Fui um pouco melhor?
— Sim, você é um bom aluno. Da próxima só diz "Vai ficar tudo bem". — Sugere e concordo, lhe observando. Saanvi era realmente f**a? Minha cabeça estava borbulhando, enquanto a olhava, tentando descobrir o porquê da cor de seus olhos ainda permanecerem um segredo para mim.
— Obrigado. — Digo e ela aguarda eu informar o porque. — Obrigado pela comida e por conversar comigo, eu sei o quanto deve ser difícil aguentar alguém tão sensível.
— Não se preocupe, você me faz perceber o quanto minha vida é boa, já que a sua é péssima. — Zomba e não sorrio, apesar de no fundo apreciar o quanto ela pode ser irônica as vezes.
{...}
— Hoje enquanto a olhava tudo pareceu tão estranho, como uma garota tão f**a como ela pode me deixar assim? Confuso, inquieto e por diversas vezes me permitir esquecer do meu transtorno, das dores que carrego em mim?
— Eu realmente não sei lhe dizer. Você sempre veio até aqui e ficou parado, montando as casas de madeira. Hoje é a primeira vez que diz algo para mim, Davi. Eu não estava preparada.
— Minha terapeuta diz e a olho arqueando as sobrancelhas.
— Desculpe, sou Davi Sullivan. Muito prazer.
— Aceno, sentando no sofá a frente de sua poltrona de couro escuro e brilhante.
— Por que não falamos sobre sua infância? Preciso entender seus traumas só assim saberei como ajudá-lo com a tal garota.
— Minha infância foi normal. Podemos falar sobre a Saanvi? Não acredito, essa é a primeira vez que falo o nome dela em voz alta! O autismo tem cura? Pareço normal, não é?
— Você é normal, estar no espectro do autismo não lhe impede em nada. Além do seu DI que é a deficiência intelectual, ser bastante leve.
— Você é muito inteligente. Me conte, fez faculdade onde? — Pergunto, cruzando as pernas e a olhando. A mulher suspira, ajeitando seus óculos com estampa de onça.
Os dias corriam com rapidez, dando-me a chance de seguir novamente a faculdade e e participar de nossas aulas durante a tarde. Saanvi havia se tornado a parte mais interessante do meu último mês, eu queria vê-la, saber o que estava pensando e que roupa extremamente colorida usaria naquele dia. Mas, não foi isso que aconteceu, ao chegar a faculdade ela estava sentada em uma das mesas no refeitório e usava cinza de golas grossas e cumprimento reto. Seus longos cabelos castanhos estavam presos e sua pele limpa, seus lábios carnudos não tinham cor como sempre viviam rosados.
— Saanvi? Tudo bem? — Pergunto e ela suspira, ao se surpreender por eu chama-la pelo nome.
— Essa é a primeira vez que diz meu nome.
— Informa e sinto uma certa timidez. — Gostaria de comemorar com um sorriso maior, me desculpe.
— Aconteceu algo? — Pergunto, ajeitando o banco que estava torto e me sentando a sua frente. Organizo seu celular que também estava torto em cima da mesa e minhas mãos tremem, por sua gola se encontrar da mesma forma.
— Faz uma semana que não temos informações sobre minha avó. Ela sempre nos liga para dizer que está bem e contar as novidades.
— Ela conta. Em minha cabeça eu já havia imaginado todas as probabilidades e a mais certa delas, é que a avó de Saanvi havia morrido.
— Não se preocupe, vai ficar tudo bem.
— Respondo, abandonando minha ansiedade pela sinceridade e tentando apenas deixa-la calma. — Preciso fazer algo. — Me levanto e toco seu pescoço, meu corpo estremece e me afasto. Ela me olha assustada. — Sua gola, está torta. — Digo aflito.
— Ah sim, obrigada. Vesti a primeira roupa que encontrei no armário. — Sorri levemente, se ajeitando. — Me diz, como está seu relacionamento com a Isadora? Já conseguiram se resolver?
— O que? — Pergunto vidrado em seu rosto, ela toca um fio solto do cabelo sem graça.
— Na verdade, eu me esqueci de conversar com ela. O que parece bastante atípico para mim, já que costumo seguir meus planos.
— Pode falar agora, ela está vindo com sua prima. Vou para a sala de aula, até mais Davi.
— Se levanta e caminha, me deixando com um certo amargor na saliva.
— Tudo certo por aqui? Aquela garota estava te enfiando bolos de amendoim novamente?
— Yasmim questiona, sentando em minha frente e Isadora faz o mesmo.
— Eram castanhas. Isadora, me desculpe por não ter compartilhado a blusa contigo, sou extremamente sensível com essa questão. Sobre o filme, se um dia saímos novamente, pode ficar a vontade para escolher e também rachamos a conta. — Digo e levanto-me, me preparando para sair.
— Davi, obrigada. Podemos marcar de sair novamente? Saiu um filme ótimo, ele é romance...
— Claro, a Saanvi gosta de romances. Deveríamos convidá-la? — Pergunto, a procurando pelos arredores da faculdade.
— É cla-claro, como quiser. — Responde e assinto, caminhando para longe dali. Paro no meio do corredor e me lembro que não havia dito tchau.
— Desculpe, me esqueci. Tchau, até depois.
— Digo, pondo um sorriso social no rosto e volto em direção a sala de aula.
As aulas naquele dia pareciam demorar uma eternidade, minhas pernas tremiam de forma acelerada e eu me sentia desesperado para o fim do tempo. Eu não estava acostumado com a forma como meu corpo e minha mente reagiam naqueles dias. Quando soube que era autista, decidi por mim mesmo aos quatro anos de idade que causaria reações atípicas o mínimo possível, mas desde que conheci Saanvi tudo isso tem sido praticamente impossível. Ela me desperta sentimentos outrora desconhecidos e sinto medo de não ter a coragem em cumprir o que prometi a mim mesmo no fim deste ano.